Segundo o teólogo britânico Alister McGrath, a literatura abre nossos olhos, oferecendo-nos novas perspectivas sobre coisas que podemos avaliar e adotar, uma vez que nossos próprios olhos não são suficientes para nós, pois enxergamos melhor pelos olhos dos outros, tornando-nos mil homens e permanecendo nós mesmos. Sob tal ótica, é inegável a imprescindibilidade da literatura para compreendemos melhor a sociedade, a realidade e nós mesmos, tendo em vista nossa finitude e singularidade ocas. Sendo assim, parece-me que nenhum escritor brasileiro fez isso melhor que Machado de Assis, já que ele utilizou inúmeros elementos psicológicos, sociológicos e filosóficos para personificar esses ensinos em seus romances, novelas, crônicas e, sobretudo, nos contos.
Um desses preceitos é singularizado no conto Suje-se gordo!, que retrata as idiossincrasias dos sujeitos desprovidos de qualquer senso ético e moral, ou melhor, providos de um senso que utiliza dois pesos e duas medidas. O conto inicia-se com um narrador que relata sua participação num tribunal do júri, na Rua dos Ouvires, princípio da Liberdade, onde um sujeito pobre é julgado por ter roubado uma quantia de dinheiro não grande, mas pequena, com falsificação de um documento. Segundo o acusado, esse furto ocorreu a fim de ajudar um amigo cujo nome ele não menciona. Esse amigo, diz o réu, teria algumas necessidades; o conto não as explicita, mas, usando a imaginação e levando em consideração o contexto do Rio de Janeiro do início do século 20, conclui -se que, talvez essa necessidade fosse um problema de saúde, uma grave crise de fome ou uma enorme dívida com um agiota.
É inegável a imprescindibilidade da literatura para compreendemos melhor a sociedade, a realidade e nós mesmos, tendo em vista nossa finitude e singularidade ocas.
Logo após a acusação da promotoria, a defesa do advogado do acusado e a sentença dos jurados, surge Lopes, um jovem ruivo que fazia parte do júri que selou o destino daquele desafortunado. Uma vez que ele não estava contente com a condenação em si, resolveu tripudiar a miséria do outro, contrariando o provérbio salomônico que diz “quem zomba dos pobres revela desprezo pelo criador deles, quem se alegra com a desgraça dos outros não ficará muito tempo sem castigo”. Lopes reverbera: “O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!”. Diante de tal atitude, o narrador do conto ficou perplexo, de boca aberta, tal como o leitor agora.
Na segunda parte, o narrador do conto, que não se identifica, relata ter sido convocado para ser um dos jurados no tribunal, haja vista que um caixa de um banco roubara uma altíssima soma de dinheiro. De início, o narrador nega-se a ir, evocando o preceito evangélico que diz “não queirais julgar para que não sejais julgados”. Entretanto, seu filho convenceu-o a participar do julgamento, porque esse era um dever que qualquer cidadão deveria prestar ao seu país. Chegando ao Tribunal, o narrador depara-se com o réu – para surpresa de todos, era Lopes quem estava sentado lá.
A perplexidade e a incredulidade tomam conta do ser do narrador-personagem, bem como a suspensão do juízo. O andamento do julgamento demonstra de maneira inequívoca a culpa do réu, já que havia milhares de provas. Mesmo assim, o ruivo Lopes mostra-se calmo e sorridente; aproveitando-se disso, o advogado profere que somente a inocência e a certeza da absolvição trariam aquela paz de espírito e serenidade. Na sequência, o júri reúne-se e absolve o ruivo Lopes mesmo com as fartas provas que demonstravam sua inequívoca culpa – somente o narrador mais outros dois jurados votaram pela condenação, enquanto nove votaram pela absolvição. Assim, o jovem Lopes saiu do tribunal pela porta da frente.
Infelizmente, esta realidade descrita por Machado não se restringe ao plano literário, haja vista a persistência de situações idênticas às descritas nesse conto: o caso do ex–deputado Geddel Vieira Lima e seu irmão Lucio Vieira Lima, presos com R$ 51 milhões escondidos num apartamento de sua propriedade; o caso do assessor do deputado federal José Guimarães (PT-CE), preso com US$ 150 mil na cueca e, posteriormente, absolvido, uma vez que o crime prescreveu; o caso de Rodrigo Rocha Loures, assessor do ex-presidente Michel Temer, flagrado pela Polícia Federal com uma mala contendo R$ 500 mil que, segundo o empresário Joesley Batista, correspondiam a pagamentos de propina. Apesar desses sisudos crimes e impunidades, nada se iguala ao que ocorre atualmente com o ex-presidente Lula, que cometeu centenas de crimes contra os brasileiros, lesando os cofres públicos, principalmente a Petrobras, e, não obstante, foi solto e tornou-se elegível novamente.
Tais indivíduos não só não demonstram arrependimento pelos atos ilícitos praticados, como também demonstram indignação por terem sido “injustiçados”, além de evocarem ojeriza por aqueles que cometem pequenos delitos. Todos, sem exceção, assemelham-se ao personagem Lopes, do conto machadiano. Em contrapartida, pessoas têm sido presas meramente por crime de opinião ou por furtar comida, tal como uma mãe analfabeta, pobre e com três filhos menores de idade, presa e condenada com uma pena maior que a de muitos corruptos da Lava Jato por roubar um quilo de pão e peito de frango no interior de São Paulo. O que vale é o “sujar-se gordo”, o magro é um vitupério irremissível.
Diante do exposto, torna-se indiscutível que o relativismo moral e ético presente no conto machadiano personifica uma herança humana antiga, mais propriamente desde a época do pecado original, sobretudo entre as classes mais abastadas e/ou poderosas, dado que elas apegam-se ao poderio econômico, político e social como âncora da impunidade. Contam, para isso, muitas vezes com a anuência das instituições do Estado Democrático de Direito, dado que o que indigna milhares de cidadãos e alguns membros das instituições, especificamente do Judiciário, não é o ato do crime em si, mas o quanto se locupletou com o ato ilícito.
Nessa perspectiva, tal circunstancia dialoga, na prática, com a teoria desenvolvida pelo personagem Raskólnikov, do centenário romance Crime e Castigo, do escritor russo Dostoiévski. O personagem dizia que existem homens ordinários, que estão submissos à moralidade, e os homens extraordinários, que estão acima das leis morais, podendo fazer o que lhes convier porque, afinal de contas, eles trarão muitos benefícios posteriormente à sociedade. Ainda persiste na sociedade brasileira, especialmente nos chacais da velha aristocracia rural do Brasil, o pensamento do jovem Raskólnikov, mesmo que essas pessoas nunca tenham lido Crime e Castigo. Vem à mente, também, o Sermão do Bom Ladrão do padre António Vieira, que equipara, sem meias palavras, tanto Alexandre, o Grande, que conquistava vastos territórios, com o simples pirata que roubava meros pescadores: “Basta, Senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? ... Assim é, o roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza”.
A literatura exerce para a sociedade o mesmo papel que o espelho exerce para os indivíduos, uma imagem fiel e ampliada das doenças sociais, mas que o cego, principalmente o cego moral, finge não enxergar ou só enxerga quando lhe convém. Que a consciência perfeita dos bons cidadãos amplifique-se e contagie os mais jovens, a fim de no futuro ocupem postos de destaque e, a partir disso, transformem essa triste realidade da Ilha de Vera Cruz, em que pessoas que cometeram pequenos delitos são envergonhadas publicamente e condenadas com penas enormes, enquanto os ladrões de colarinho branco permanecem livres e/ou, quando condenados, cumprem penas mínimas, contando muitas vezes com a letargia do sistema jurídico e da mendacidade dos paladinos da Justiça brasileira.
Rodrigo Guimarães é estudante de filosofia, ciência política e literatura.