A mais nova cartilha ética e moral foi escrita à sombra da pandemia de Covid-19, ao longo de 2020. Mesmo que ela reflita uma tendência que perdura há pouco mais de duas décadas, foi a partir do último Fórum Econômico Mundial (WEF), realizado em Davos, que um conjunto de crenças (a fé no progresso tecnológico; a certeza da falência da moralidade política; e a dependência de ofertas de serviços mais do que de bens) ganha o nome de The Great Reset,ainda sem tradução consensual para o português. Assim, o presidente do WEF, Klaus Martin Schwab, e o analista econômico Thierry Malleret deram corpo à percepção mundial de que a sociedade já não conhece outra forma de viver além dos serviços oferecidos pelas Big Techs.
A ideia veiculada por Schwab e Malleret no livro Covid-19: The Great Reset é sustentada por dois princípios. 1. A maior instituição da contemporaneidade é a Empresa. Quando colocada em comparação com a Ciência, a Religião e o Estado, a Empresa se destacaria por oferecer ao individuo maior acesso a bens materiais que proporcionariam uma espécie de elevação moral. Comprar de uma empresa que adere ao discurso sustentável, por exemplo, não seria somente adquirir um produto, seria também ganhar uma validação moral e o adiamento do julgamento e linchamento públicos. 2. Mas não é qualquer empresa que conseguiria alçar tal posição. Em primeiro lugar, ela deve ser capaz de prosperar na crise e nas adversidades (daí a pandemia ser vista como ponto de inflexão para a cartilha). Aquelas que faliram durante a crise sanitária, de acordo com a lógica dos autores, não teriam sido capazes de entender a demanda, oferecer recursos viáveis aos consumidores ou se projetar como modelo moral. Em contrapartida, as que prosperaram o fizeram por terem conseguido cruzar a fronteira do “ultrapassado” e oferecer a seus clientes novos modelos de mercado e de ações éticas.
Não se questiona que o consumo deve partir de princípios, necessidades e vontades, mas um ideal saudável de mercado deve ser garantido pela livre concorrência, ou seja, pela liberdade de qualquer um para oferecer qualquer produto. Entretanto, as propostas veiculadas transformam estratégia empresarial em filosofia ética. Se se concretizassem, facilitariam a criação de grandes monopólios que controlariam os produtos, os serviços e o padrão moral por trás dessas vendas. Com o perdão da salada teórica, mas que é o modo mais prático de descrever o movimento proposto, o Great Reset imporia aos consumidores um “comunismo empresarial”: um mercado gigantesco nas mãos de poucas companhias que censuram novas iniciativas ou opiniões por meio da coerção moral e financeira. Diferentemente do Estado, essa coerção não necessitaria de força física, pois os indivíduos não garantem à Empresa esse direito; bastaria que os monopólios prejudicassem financeiramente os indivíduos discordantes sob alegação de que fogem da moral “útil” (que nada tem a ver com o pragmatismo utilitarista).
Ainda que a ideia de controle das opiniões e ações individuais soe conspiratório, mesmo no livro dos economistas, ela ganha explicações pragmáticas quando observamos em quais campos ela floresce. Em parte, a ideia do Great Reset atende a uma demanda geracional: muitos que conheceram o mundo desconectados já se foram ou não se lembram mais dele. Em 2017, de acordo com as pesquisas do Pew Research, os Millennials, geração nascida entre 1980 e 1996, já ocupavam praticamente 50% dos postos de trabalho no mercado americano. Em busca de segurança emocional e conforto, esta é também a geração que mais apoia medidas politicamente corretas e projetos de regulação das ações individuais. Juntamente com a geração sucessora, chamada de Z (dos que nasceram após a segunda metade do século 20), os Millennials têm um sentimento geral de que o Estado deve resolver mais problemas no lugar de proporcionar recursos para que os indivíduos façam por si. Ou seja, a maioria daqueles que hoje dominam o mercado tem o sentimento de que eles precisam ser cuidados e guiados, e se prontificam a receber facilidades sem pensar na fatura.
Assim, de modo geral, a tendência dos últimos 30 anos foi a de que os jovens e adultos tomassem decisões que oferecessem maior segurança e sociabilidade em sacrifício da análise de resultados no longo prazo. Não há dúvidas de que isso moldou o caminho das grandes companhias. O mercado, que fareja a demanda, foi atrás daquela sintetizada na figura dos Millennials: facilidade de informação e segurança emocional.
Outra demanda a ser lembrada é a política: não houve, em dez anos, resposta plausível para a crise de representatividade política. A sociedade brasileira, nomeadamente, deposita mais confiança na tecnologia (86% em 2018) e em “uma pessoa como você” (77% em 2020) do que em empresas ou instituições públicas e porta-vozes políticos. A tendência mundial nos últimos cinco anos não foge muito desses números. As redes sociais, alimentadas ou criadas pelas grandes marcas e conglomerados, ofereceram à maioria silenciosa a voz que desejavam, atendendo à demanda das repúblicas democráticas.
Não há inteligência que supere o erro de se comprar por medo ou desespero. Nos últimos anos, as Big Techs criaram produtos para ambos. Para o medo dos Millennials (medo de serem contrariados, de serem ridicularizados pelas más escolhas, de não pertencerem a nenhuma bolha, de não encontrarem a vaga no emprego e tantos outros originados em uma geração estável materialmente, mas com baixíssima autoestima e resiliência para lidar com a realidade), ofereceram a sensação de igualdade e justiça. Se for ofendido, dê “block”. Se não concordar, dê “dislike”. Por fim, no estágio em que estamos, se não alimenta o sistema e a cartilha, dê “ban” ou “strike”.
Para os silenciados políticos, as empresas ofereceram recursos para opinarem. Ainda que estes tenham sido mais construtivos e favoráveis a todos, não deixaram de categorizar as opiniões como fake news depois de anos alimentando as páginas dos usuários com informações da própria bolha. Não esconderam – mas também não deixaram claro – o apoio a este ou aquele político ou ideologia, mostrando-se mais parciais e suspeitos do que muitos representantes do poder público. Permitiram, fortaleceram e apoiaram atitudes de justiceiros que agem em nome de uma moral cabalística, enquanto se qualificavam como isentos e técnicos.
De maneira geral, não é mera casualidade que a situação vivida hoje pelas grandes companhias encontre respaldo nas prescrições do Great Reset. As Big Techs alimentam e apoiam a cartilha de Schwab e Malleret (vide o site do projeto) e distribuem seu produto chamado de “novo normal”. Na palavra dos autores, o texto, que é um “híbrido de livro acadêmico e ensaio”, oferece, de maneira confusa, aparados “úteis” ao leitor sem dar verdadeiras recomendações. Contraditoriamente, estão inclusos no livro “exemplos teóricos e práticos” e “conjecturas e ideias sobre como o mundo pós-pandemia pode, ou talvez deva ser”. O “novo normal”, produto que a cartilha quer vender e que está disponível nas plataformas, é, por fim, um manual completo sobre como as empresas podem prosperar durante e após a pandemia se obtiverem – à custa da privacidade e da opinião dos indivíduos – o monopólio da virtude.
Não há problemas em estudos de mercado e de marketing. Como vender mais, como atingir mais clientes e como fazer a empresa crescer são preocupações naturais para qualquer empreendedor. Mas a suspeita começa quando as estratégias administrativas se tornam pregações éticas, como se a ação humana fosse não só previsível como programável. A consequência é a perda da individualidade em favor da “interdependência” humana; do questionamento racional em favor da “velocidade” de informação; e da observação pessoal da realidade em favor da “complexidade” dos metadados. O “Reset individual”, último capítulo do livro, partindo de uma dicotomia para explicar como o ser humano age, defende uma planificação moral: quem, durante o lockdown, cantou nas sacadas agiu corretamente (de maneira interdependente); quem compartilhou fake news e questionou alguma das regras do politicamente correto “agiu contra o bem comum”.
Pregar que tal proposta irá se impor e o mundo arderá é conspiratório e é cair no mesmo erro da cartilha. Há um produto a ser vendido, há um manual de como usá-lo e há certa demanda, mas o que querem fazer parecer é que há também uma obrigação de adquiri-lo.
A cartilha é longa e suas prescrições se estendem também à pessoa física. Mas quem por inocência, ignorância ou conveniência tenta vender seu produto busca empurrar goela abaixo do consumidor o sentimento de que não há escolha a não ser aderir a este ou aquele ditame moral. Tal realidade, porém, não impacta somente os indivíduos “comuns”, e as grandes marcas já sentem a resposta dos consumidores que asseveram não aceitar a tentativa de controle.
Há empreendimentos e esforços para se criar concorrência, sinônimo de opção e liberdade de escolha. Há quem decida por fazer um pouco mais de esforço físico, mas assegurar seus cookies e não alimentar os metadados. Existem aqueles que preferem investir seu tempo selecionando a dedo as informações e o entretenimento que vão consumir, em vez de esperar que os algoritmos das plataformas lhes indiquem o que ler ou assistir. Aos poucos, mas de maneira constante, os arautos do Great Reset e do “novo normal” pagam o preço por “terem se esquecido” de que a escolha do indivíduo e a garantia de múltiplas ofertas são produtos mais interessantes e atrativos aos olhos dos honestos consumidores, ciosos quanto à sua liberdade.
Rodolfo Nogueira da Cruz é mestre e doutorando em História e bolsista Fapesp.
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