Antes mesmo de assumir o cargo, o novo ministro da saúde, Nelson Teich, fez a afirmação absurda: na falta de leito no hospital, escolhe-se para sobreviver o doente jovem. Teich explicitou a realidade imoral praticada todos os dias, com ou sem epidemia, e não só nos hospitais e na saúde, mas em todos os serviços sociais, com escolha não pela idade, mas pela renda.
Independentemente do coronavírus, quem recorre aos melhores hospitais é quem pode pagar por ele. Sendo um dos velhos que seria preterido, posso dizer que o critério indecente do ministro com base na idade não é mais desumano do que o critério baseado na renda. É por esse critério que há décadas deixamos morrer pessoas sem dinheiro para pagar médico e hospital, para ter água tratada e rede de esgoto em casa, comida suficiente na mesa. Não é por escolha dos médicos: o sistema social escolhe pela renda.
Essa seleção da sobrevivência ocorre desde o nascimento. O sistema social escolhe as crianças que morrerão na primeira infância, por falta de comida, água limpa e saneamento; seleciona quais entrarão em boas escolas e permanecerão nelas e quem vai adquirir conhecimento para enfrentar a competição do mundo moderno. A escola é o balão de oxigênio do cérebro e seleciona os que se beneficiarão dela.
Apesar do esforço do SUS, a sobrevivência vem ocorrendo pela renda do doente, sob os olhares de todos que não queremos ver nem entender a triste realidade social brasileira. Ao falar da escolha por idade, o novo ministro explicita a imoralidade da escolha por renda. Com a desumanidade da lógica que apresentou, desnudou o desumanismo do sistema social.
Indignados com a ideia desumana da seleção beneficiando jovens, toleramos a seleção que beneficia ricos, tanto na saúde quanto na moradia, no transporte, nas escolas. Não toleramos a preferência de leitos para jovens, mas aceitamos com naturalidade a preferência para quem pode pagar por eles.
Seria bom se a frase do Dr. Teich, servisse para mostrar o desumanismo do sistema social que nega escolas de qualidade para os que têm pouco dinheiro e, em consequência, levarão a vida sem emprego de qualidade, sem renda e sem hospital. Embora indignados com a indecência etária, aceitamos a indecência monetária da medicina privada.
O Mapa da Desigualdade mostrou que no ano passado moradores de um bairro pobre em São Paulo viviam até 23 anos menos que os de um bairro de classe média. Ao reclamar da indecente hipótese do novo ministro, precisamos lembrar que os jovens negros das periferias de nossas cidades vivem menos que os habitantes dos bairros privilegiados.
Todos os dias o sistema está escolhendo quem vai sobreviver e quem não vai: quem será analfabeto, desempregado, sem teto, sem água, sem saneamento, sem esperança, preteridos nos hospitais quando precisam. A lógica Teich, na verdade, é a velha lógica do sistema.
Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília.
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