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A luta pela Previdência pública

 | Jonathan Campos/Gazeta do Povo
(Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo)

Desde o envio ao Congresso Nacional da Proposta de Emenda Constitucional 287 (PEC 287), em novembro de 2016, o governo de Michel Temer e sua base aliada têm empreendido esforços intensos para promover a reforma da Previdência. A pretensão inicial do governo era aprovar a proposta na Câmara de Deputados até abril de 2017 e, em meados do ano, no Senado Federal. Devido à abrangência das medidas e em função da resistência de diversos setores da sociedade, que identificaram redução de direitos na proposta, o governo não conseguiu seu objetivo. No entanto, os interesses vocalizados pelas agências de classificação de risco de crédito e por economistas vinculados a instituições financeiras continuam pressionando pelas mudanças das regras da previdência pública. Além disso, como as despesas previdenciárias constituem o segundo maior grupo de despesas do orçamento da União (depois das financeiras) e crescem em ritmo mais acelerado que as demais despesas primárias, colocando em xeque o “teto de gastos”, o governo insiste na intenção.

Recentemente, nas negociações com os parlamentares, foi apresentada extraoficialmente uma nova proposta para a reforma da Previdência. Mesmo adotando o discurso de que a nova proposta era mais branda que as versões anteriores e que visava essencialmente combater privilégios, o governo não conseguiu obter os votos necessários para aprovação de uma emenda constitucional. De forma atabalhoada, a votação da PEC 287 foi novamente adiada, para a segunda quinzena de fevereiro de 2018. E, diante da dificuldade de se aprovar proposta desse tipo em ano eleitoral, já se fala em novo texto. Mas vale a pena analisar mais a fundo em que medida a nova proposta é menos severa e se, de fato, combate os privilégios na sociedade brasileira.

No debate atual sobre a reforma da Previdência pública, chama a atenção a não apresentação oficial da proposta que está sendo negociada com os congressistas . Ou seja, a sociedade brasileira não tem conhecimento formal sobre uma proposta de alteração da Constituição que afeta, direta e substancialmente, sua condição de vida em casos de perda de capacidade de trabalho ou de renda, e reorienta os rumos de desenvolvimento do país. Apesar de não ter sido divulgada oficialmente, é possível ter acesso ao que seria a nova proposta do governo.

Chama a atenção a não apresentação oficial da proposta que está sendo negociada com os congressistas

Em linhas gerais, essa versão da PEC 287 estabelece, como regras de aposentadoria voluntária ou programável: no Regime Geral de Previdência Social (RGPS, do INSS), idade mínima de 62 anos (no caso de mulheres) ou 65 anos (no de homens) com 15 anos de contribuição pelo menos; no Regime Próprio de Previdência Social (RPPS, que é sistema de previdência de servidores públicos), os mesmos limites etários (62 para mulheres e 65 para homens) com ao menos 25 anos de contribuição, além de dez anos de serviço público e cinco anos no cargo em que se aposentou; e no caso de professores (de ambos os sexos) da educação básica, a idade mínima é de 60 anos, nos dois regimes, além dos demais requisitos por regime acima citados.

Com essas regras, institui-se de modo generalizado e estrito idade mínima para aposentadoria e ficam extintas as aposentadorias proporcionais por idade do RPPS e as aposentadorias por tempo de contribuição do RGPS. A idade mínima de aposentadoria das mulheres se eleva dos 60 anos atualmente em vigor para 62 anos. Essas regras também significam, de forma geral, adiamento da idade de aposentadoria de professores e professoras da educação básica. Pela proposta, todos esses limites etários também irão ser elevados gradual e automaticamente, com o aumento da expectativa de sobrevida da população brasileira, até os 65 anos de idade.

Em relação às regras gerais de aposentadoria contidas no texto da PEC 287 aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, essa versão “não oficial” inova somente no tempo mínimo de contribuição no Regime Geral. A versão aprovada na comissão estabelecia 25 anos como tempo mínimo de contribuição para o INSS e a versão “não oficial” determina 15 anos, como é hoje. Em relação à situação atual, porém, a versão “não oficial” reduz o valor do benefício para quem se aposentar pelo tempo mínimo de contribuição. Hoje, o homem que se aposenta no RGPS aos 65 anos com o tempo mínimo de contribuição recebe um benefício com valor calculado com base em 85% da média das 80% maiores contribuições; pela “PEC não oficial”, o cálculo consideraria 60% da média de todas as contribuições.

Embora não haja diferença para a forma de cálculo do valor do benefício fixada no texto do substitutivo aprovado na Câmara, vale notar que o benefício de valor equivalente a 100% da média de todas as contribuições exigiria 40 anos de contribuição para a Previdência. Atualmente, quem se aposenta por idade no RGPS com 30 anos de contribuição recebe 100% da média das 80% maiores contribuições (ou seja, média com descarte das 20% menores contribuições). Ressalte-se que tanto na proposta substitutiva da Comissão quanto na versão “não oficial” o salário mínimo continuou sendo o piso dos benefícios da Assistência e da Previdência – ou seja, nenhum benefício pode ser inferior a um salário mínimo.

Os trabalhadores rurais, homens e mulheres, continuam muito afetados pela proposta de mudança. A versão mais atual da PEC mantém a equiparação de regras de aposentadoria dos empregados assalariados rurais às regras dos demais assalariados. Todos teriam de contribuir por 15 anos e se aposentar aos 62 anos (mulheres) e 65 (homens). Essas regras praticamente inviabilizam a aposentadoria dos assalariados rurais, dadas a sazonalidade da contratação e as condições de trabalho no campo. Também os trabalhadores da agricultura familiar enfrentarão grande dificuldade para se aposentar se a “PEC não oficial” vier a ser aprovada, em que pese o discurso de representantes do governo e de sua base aliada de que os segurados especiais da economia familiar foram poupados de mudanças. Apesar de manter a idade mínima antecipada atualmente em vigor (55 anos para mulheres e 60 anos para homens), a redação da versão “não oficial” impõe o período mínimo de 15 anos de contribuição mensal e individual dos membros da família, o que é incompatível com sua realidade produtiva e econômica.

Já em relação às pensões, o texto “não oficial” da PEC mantém as propostas do substitutivo de calcular o valor do benefício segundo cotas por dependentes, sendo que, por lei, filhos só são considerados dependentes até os 21 anos. Assim, se a pessoa falecida filiada à Previdência só tem o cônjuge por dependente, o valor da pensão será de 60% do valor da aposentadoria, respeitado o piso de um salário mínimo. Além disso, também preservando as regras da versão do substitutivo aprovada na Comissão da Câmara, fica proibido acumular dois ou mais benefícios previdenciários (aposentadorias e/ou pensões), com algumas exceções, das quais a mais importante reza que só se pode acumular pensão e aposentadoria com valor conjunto de dois salários mínimos. Também fica mantida a extensão ao Regime Próprio da regra atual do Regime Geral que condiciona o prazo de duração das pensões à idade do cônjuge, ao tempo da união conjugal e ao tempo de contribuição da pessoa segurada que faleceu. Ou seja, não há novidade na versão “não oficial” em relação às regras para pensões previstas no substitutivo.

A proposta “não oficial” traz algumas medidas de melhoria de financiamento e da contabilidade da Previdência. Conforme já estava estabelecido no texto aprovado pela Comissão da Câmara, a nova versão determina a não isenção ou redução da alíquota das contribuições previdenciárias, a não ser para as pequenas empresas enquadradas no Simples Nacional e para os contribuintes favorecidos, tais como os microempreendedores individuais. Essa medida elimina as isenções de setores exportadores, inclusive do agronegócio, mas não altera a isenção das entidades filantrópicas. Adicionalmente, a versão mais atual inova ao determinar que as contribuições para a Seguridade Social (as contribuições previdenciárias, a Cofins, CSLL e outras) não serão objeto de medidas de desvinculação orçamentária, isto é, não sofrerão impacto da Desvinculação das Receitas da União (DRU).

Uma mudança relevante na versão “não oficial” diz respeito à Assistência Social. O novo texto retira todas as menções ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), o que significa que, em princípio, continuariam prevalecendo as regras atuais (de idade mínima para o BPC de idoso pobre aos 65 anos; de renda familiar; de deficiência a ser considerada para o BPC de pessoa com deficiência etc.).

Conforme pode se constatar, portanto, essa versão “não oficial” de reforma da Previdência pública altera relativamente pouco o conteúdo da versão substitutiva aprovada pela Comissão da Câmara dos Deputados. As principais mudanças positivas referem-se à retirada de mudanças no benefício da Assistência Social (BPC), à apresentação mais fidedigna do orçamento da Seguridade (que ainda requer maiores correções) e à manutenção do tempo mínimo de contribuição atual ao RGPS, de 15 anos, embora com redução significativa do valor do benefício para quem se aposentar com o tempo mínimo de contribuição.

Os grandes privilégios que vigoram no país não estão na Previdência, mas na estrutura tributária

Nem a versão original da PEC 287 enviada pelo Poder Executivo, nem a versão substitutiva aprovada na Comissão da Câmara ou essa versão “não oficial” contemplam melhorias na gestão da Seguridade Social e na fiscalização de seus recursos. Nenhuma dessas versões tampouco propõe medidas para ampliar o grau de cobertura da Previdência. No sentido contrário do fortalecimento das finanças da Previdência e da inclusão na rede de proteção social, a reforma trabalhista, que recentemente entrou em vigência, trará corrosão na capacidade financeira e na cobertura da Previdência. Ao instituir ou ampliar as possibilidades de contratação de força de trabalho por meio de contratos com baixo grau de adesão à Previdência e ao favorecer a aceleração da rotatividade de trabalhadores, a reforma trabalhista gera ao mesmo tempo a desproteção social e o rebaixamento do financiamento à Seguridade Social, mesmo se as regras atuais não fossem alteradas. Além da contratação de trabalhadores autônomos e intermitentes, a “pejotização” de trabalhadores (isto é, sua contratação como pessoas jurídicas) ameaça o sistema de financiamento da Previdência.

Toda essa sequência de propostas para a Previdência pública continua apoiada, em essência, sobre uma concepção da Previdência exclusivamente como fonte de despesas para o Estado, o que, segundo essa abordagem, exige uma redução de gastos, por meio de elevação das condições de acesso aos benefícios e rebaixamento do valor dos benefícios. Ao lado dessa visão financista sobre a Previdência pública, também vigora uma perspectiva de privatização da Previdência, com incentivo ao deslocamento para a previdência privada de trabalhadores mais bem posicionados em empregos de qualidade. As perspectivas financista e privatista da Previdência pública não consideram a previdência como um direito social, conforme consta no artigo 6.º da Constituição Federal. A consideração da Previdência como direito social exigiria uma reforma que ampliasse a cobertura, favorecesse os empregos de boa qualidade e o desenvolvimento e garantisse a sustentação da rede de proteção social.

A verdadeira discussão por trás da disputa pela Previdência pública diz respeito ao Estado que se quer e à forma de seu financiamento. Ou seja, está em discussão em que medida o direito à previdência vai ser efetivado e como deve ser o financiamento da política previdenciária. Sob essa perspectiva, fica patente que os grandes privilégios que vigoram no país não estão na Previdência. Os grandes privilégios podem ser identificados, por exemplo, na estrutura tributária, ou seja, no financiamento do Estado. No caso brasileiro, a estrutura tributária reflete a distribuição de forças da sociedade. Uma das fontes principais de privilégio no país é não contribuir ou contribuir relativamente pouco para sustentação do Estado e das políticas públicas. Não pagar tributos ou pagar pouco é um privilégio; e tem esse privilégio o segmento social que tem força para tal. Assim, a isenção do Imposto de Renda para distribuição de lucros e dividendos; a baixa tributação das aplicações financeiras e das heranças; a baixíssima tributação da propriedade fundiária; o desmonte da fiscalização previdenciária; e as constantes renegociações de dívidas tributárias, com generosos perdões, evidenciam a verdadeira estrutura de privilégios do país. Nada é mais indicativo da real fonte de privilégios do país do que a aprovação pelo Congresso Nacional, durante as intensas negociações da reforma da Previdência, de reduções brutais de dívidas com a Previdência e de uma reforma trabalhista que estimula a contratação de trabalhadores sem contribuição para a Previdência.

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