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A marca invisível

Três dias atrás, subitamente, as torneiras e os chuveiros secaram nas residências de 10 milhões de habitantes de Delhi. O colapso de abastecimento deveu-se à invasão e sabotagem do Canal de Munak por manifestantes da casta Jat, furiosos com uma decisão da Corte Suprema de proibir a reclassificação oficial do grupo como “casta retardatária”. Não há uma genuína novidade na eclosão da revolta Jat: a política de castas na Índia provoca uma ebulição social tão permanente quanto retrógrada. Cada levante inspira outros, sempre focados na reivindicação de privilégios de grupo. A democracia indiana reduz-se, cada vez mais, a um insulfilme barato destinado a ocultar a falência do princípio da cidadania.

O conceito de casta é muito antigo, mas a política de castas é relativamente recente. As castas existem na vida terrena, mas seu fundamento pende da vida cósmica. Elas são um elemento central no edifício do hinduísmo e se articulam em torno da noção de pureza. Não se trata da pureza de um indivíduo, no seu ciclo biológico de vida, mas de algo mais complexo, expresso na crença do carma. O corpo perece, mas a alma permanece e se transmite através das gerações.

Na Índia, contam-se vários milhares de castas e subcastas regionais. Os Jat, antiga comunidade de agricultores-guerreiros, não eram uma casta no sentido hinduísta tradicional, mas uma fluida confederação formada por clãs. Contudo, desde a colonização britânica, integraram-se aos sistemas de castas das regiões setentrionais do país. A oficialização das castas produziu um modelo identitário mais ou menos uniforme, que oferece oportunidades políticas e, por isso, se sobrepõe às identidades comunitárias pretéritas.

“Discriminação positiva” é o nome bonito que se dá à opção por uma dupla injustiça

As primeiras codificações legais do sistema de castas originaram-se nos reinos Rajput, no século 16, como instrumento de controle social dos hindus pelos governantes islâmicos. A estratégia foi copiada, ampliada e refinada pelos britânicos, no século 19, que o utilizaram para estabelecer alianças com grupos nativos “superiores”. O primeiro censo geral da Índia, conduzido em 1872, já continha um modelo de classificação de castas. Depois da independência, os líderes políticos indianos apropriaram-se das classificações coloniais para fazer o jogo da distribuição de vantagens e privilégios.

Em tese, castas não têm lugar na ordem legal da Índia. A Constituição, de 1949, assegura a todos a “igualdade de estatuto e oportunidade”. O artigo 14, moldado pela 14.ª emenda da Constituição americana, assegura a qualquer cidadão a “igual proteção da lei”. O artigo seguinte proíbe a discriminação legal com base na religião, na casta, no sexo ou no lugar de nascimento. Mas, contraditoriamente, o texto constitucional inclui um conceito de coletividade de nascimento que representa a negação do proclamado princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.

No artigo 16, que afirma a igualdade de oportunidade no acesso aos empregos públicos, um parágrafo confere ao Estado o direito de reservar cargos públicos para “qualquer classe retardatária de cidadãos”. Além disso, diversos artigos estabeleceram a reserva de assentos legislativos às “castas retardatárias”. Abria-se, desse modo, uma senda para a introdução das emendas que formam o mais amplo programa da chamada “discriminação positiva” do mundo. De lá para cá, o princípio da igualdade sofreu corrosão profunda, tornando-se pouco mais que um vestígio das grandes esperanças suscitadas pela independência.

A Corte Suprema perdeu a batalha inicial, em 1951, quando invalidou um sistema de cotas na admissão às escolas de Medicina do estado de Madras, apenas para assistir à aprovação parlamentar de uma emenda constitucional que legalizava a reserva de vagas destinadas às “castas retardatárias”. Dali, ao longo das décadas, nasceram os programas federais e estaduais de cotas nas instituições de ensino e no funcionalismo público. Junto com eles, disseminaram-se as reivindicações pela reclassificação de grupos como “castas retardatárias”. Classificados, a partir de indicadores econômicos médios, como uma “casta superior”, os Jat do estado de Haryana exigem um proveitoso “rebaixamento”. Seguem os exemplos de vários outros grupos que obtiveram o mesmo benefício num jogo infinito de pressões políticas, chantagens eleitorais e irrupções de violência.

O princípio da igualdade legal assenta-se na promessa de que todos os indivíduos terão oportunidades decentes na vida. A política da “discriminação positiva” repousa, pelo contrário, na distribuição de privilégios para grupos sociais definidos segundo uma classificação oficial. Os Jat de classe média tendem a ser os principais beneficiários da reserva de vagas no funcionalismo público que seus líderes reivindicam. “Discriminação positiva” é o nome bonito que se dá à opção por uma dupla injustiça. De um lado, ela eterniza a baixa qualidade dos serviços públicos destinados à maioria da população, prometendo compensá-los pelo recurso às cotas. De outro, cria facilidades extraordinárias para o escalão superior da casta alegadamente retardatária.

A cor da pele não distingue as castas. Na Índia, a “discriminação positiva” legitima-se sobre uma marca social invisível. No Brasil, a política de cotas raciais legitima-se sobre uma marca individual mais ou menos visível, que é a cor da pele. A outra diferença é que, entre nós, o princípio legal da igualdade foi renegado por iniciativa da própria corte constitucional. No mais, o Brasil segue a via trilhada pela Índia. Aqui, como lá, a marca da distinção exige classificações dos cidadãos que reduzem os indivíduos à condição de exemplares de grupos sociais tipificados por meio de atos oficiais. Além disso, crucialmente, a película da “ação afirmativa” disfarça uma persistente exclusão no âmbito educacional que discrimina negativamente os pobres de todas as “castas”.

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