Em agosto, o ar aqui em Hong Kong adquire vida própria; o vento sopra tão úmido que a sensação é de sufocamento. E foi em um desses dias abafados que recebi em casa um faz-tudo. Trinta e poucos anos, simpático, bronzeado e coberto de suor, eu o contratara em uma loja de ferragens local para desmontar uma cama extra que eu pretendia vender.
Conforme começou a tirar os pregos, comentou: "Então quer dizer que você tem ido para a rua, hein?" Dei um passo para trás, imediatamente alerta. "O que me entregou?" "Tem um capacete de obra amarelo do lado do sofá", disse, rindo. "Não se preocupe; também saio uma semana sim, outra não. Com os resgatistas. Ajudo do jeito que posso."
Enquanto ele fumava um cigarro na minha cozinha, conversamos sobre os protestos que varrem a cidade, pedindo pelo menos uma promessa dos líderes de um sistema de freios e contrapesos no governo e da manutenção de certos direitos e liberdades. "Meu filho vive me pedindo que eu explique por que a polícia está batendo nas pessoas. Até as crianças sabem que algo está muito errado", comentou.
Antes de ir embora, ele me disse para ligar se precisasse de qualquer outro conserto em casa. "Somos aliados. E, se você estiver por lá e precisar de ajuda, já tem meu número", completou.
Esse encontro resume bem a sensação desconcertante que já venho sentindo há meses. Minha vida "real" – aquela em que vou para o trabalho todo dia, tomo um drinque com os amigos à noite, me escondo debaixo das cobertas com um bom livro antes de dormir ou peço a alguém que venha consertar isso ou aquilo – existe em um universo paralelo, no qual a cidade não está ardendo. No fim de semana, mergulho em outro mundo – aquele em que saio usando equipamento de segurança, capacete e máscara no rosto –, para testemunhar milhares de pessoas marchando nas ruas e depois voltar para casa e acompanhar o noticiário tarde da noite.
Está ficando cada vez mais difícil ignorar os protestos. Eles não estão mais confinados a lugares específicos
A sensação que tenho é de que os dois não se agregam lá muito bem. Não conheço a grande maioria dos outros manifestantes. Com exceção de alguns poucos amigos íntimos, quase todo o pessoal que encontro no dia a dia, seja no trabalho ou no bairro, não é o tipo de gente com quem eu discutiria política, pois o tema é pesado demais para bate-papos rápidos. Por isso, na segunda de manhã, não tenho a mínima ideia se algum colega também foi rechaçado com gás lacrimogêneo, ou se a senhorinha que vive na casa de frente ao meu prédio é a mesma que vi oferecendo sanduíches para os ativistas famintos.
Nos fins de semana, partes da cidade se transformam em campo de batalha, com a polícia de choque em formação e as barricadas de metal nas calçadas cobertas de resíduo de spray de pimenta. De segunda a sexta, as pichações parecem inadequadas, com as ruas tomadas novamente pelos trabalhadores, todos com pressa, correndo para lá e para cá.
Há dois meses, aonde quer que vá, fico pensando nas pessoas à minha volta: será que elas sabem o que está acontecendo na cidade? Olho para elas – as mulheres de legging, inacreditavelmente esbeltas, da minha aula de ioga aos sábados, o funcionário do japonês que entrega meu pedido, os adolescentes que jogam basquete na porta do prédio. Algum deles participa dos protestos também?
Mesmo meus parentes vivem em uma realidade alternativa, e parecem se revezar no envio de informações erradas e/ou distorcidas criticando os manifestantes, compartilhando torpedos e mensagens de fontes desconhecidas. Um deles me garante que a família "não tem intenção de dar pitaco na minha vida", mas fica me mandando propaganda pró-China mesmo assim.
De vez em quando, algum detalhe invade a ilusão. Em uma manifestação recente, um rapaz todo de preto me agarrou pelo braço. "Ei, não me reconhece mais? Estava na sua classe no curso de Direito!" Eu não me lembrava.
"Talvez se você tirar a máscara? É que não consigo saber só pelos olhos... mas talvez seja melhor não fazer isso agora", sugeri. Quinze minutos depois, fomos atingidos pelo gás lacrimogêneo e ele sumiu no meio da multidão.
- E se Hong Kong entregasse dissidentes a Pequim? (artigo de Stefano Magni, publicado em 13 de junho de 2019)
- Será o fim da Hong Kong que conhecemos? (artigo de Ray Wong Toi-yeung, publicado em 6 de junho de 2019)
- O que aprendemos com o massacre da Praça da Paz Celestial? (artigo de Wang Dan, publicado em 3 de junho de 2019)
A ameaça constante de indiciamento pela participação no que o governo de Hong Kong chama de "protestos ilegais" nos força ao anonimato. Nos fóruns on-line, onde as estratégias das manifestações são discutidas, adotamos pseudônimos estranhos; os nomes verdadeiros jamais são utilizados. Uma frase já popular entre os manifestantes hoje é: "Um dia, a gente vai poder tirar as máscaras, se abraçar e finalmente ver uns aos outros". As autoridades honconguesas já prenderam mais de 800 pessoas desde os primeiros protestos antiextradição, em junho, incluindo diversos ativistas pró-democracia, movimentos esses que parecem cada vez mais distantes.
Mesmo o mundo on-line parece dividido em dois planos diferentes: enquanto os fóruns de discussões são anônimos, as redes sociais normais se tornaram um canal para a população exprimir sua opinião sobre o movimento. Conheço um número enorme de jornalistas, por isso talvez eu viva em uma bolha, pois a grande maioria dos meus amigos não fala de outra coisa na internet. Alguns deles, cuja consciência política foi despertada durante o Movimento dos Guarda-Chuvas de 2014, hoje se dedicam totalmente a estancar o rápido enfraquecimento das liberdades restantes que temos por aqui. Até quem nunca ligou para política – como se ela pudesse ser dissociada do dia a dia – de repente começou a postar sobre o assunto no Instagram.
Os que se mantêm em silêncio o fazem pelas razões previsíveis: eu já tinha visto postarem selfies ao lado de bambambãs do governo, orgulhosos, ou darem a entender suas ambições profissionais na China. Outros, que eu sabia serem ativos nas manifestações, preferiram não alardear suas contribuições. Um deles explicou em entrevista: "Talvez o anonimato seja consequência do medo, mas não deixa de ser igualitário; tipo, o que quer que façamos, somos apenas gente comum que ama Hong Kong".
Pelo menos aqueles que se opõem totalmente ao movimento estão tomando uma posição; mais inexplicável são os que se recusam a se engajar, seguros no privilégio de poder ignorá-lo completamente – ou aqueles que dizem apoiá-lo até o momento em que começar a afetar sua rotina, ainda que seja exatamente esse o objetivo da desobediência civil.
Esses mundos estão se chocando com uma frequência cada vez maior. Há duas semanas, combinei de me encontrar com amigos para jantar em Causeway Bay, uma das regiões de compras mais badaladas da cidade. Quando saímos do restaurante, havia um grupo de policiais investindo contra os manifestantes. O outdoor imenso, sempre aceso, iluminado pelas propagandas de produtos de beleza ou bolsas de luxo, estava apagado. Eu nunca tinha visto aquelas ruas tão escuras. Naquela noite, a caminho de casa, pisei em uma poça de sangue na entrada da estação de metrô.
Está ficando cada vez mais difícil ignorar os protestos. Eles não estão mais confinados a lugares específicos; na verdade, são realizados esporadicamente em toda a cidade, inclusive nos dias de semana. Está ficando impossível fingir que esse é um movimento político marginal.
Só há um único universo paralelo que desejo: aquele em que os garotos passam o verão nos shopping centers, cantando nos karaokês e reclamando dos trabalhos escolares de férias, e não organizando movimentos ou se preocupando em esconder o material de proteção para não serem pegos pelos pais. É aquele em que toda a população pode ir para a rua e ninguém tem de adivinhar quem é aliado e quem não é.
Karen Cheung é uma escritora de Hong Kong.
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