| Foto: Mauro Pimentel/AFP

Em artigo anterior, publicado quando da decretação da intervenção federal no estado do Rio, expliquei que a crise fluminense não é pontual nem idêntica à de outros estados; que se trata de crise longa e cada vez mais grave, cuja causa remonta à gerência da região durante 150 anos por parte da União federal, seguida pela atabalhoada transferência da capital do Brasil para o Centro-Oeste e, 15 anos depois, pela artificial fusão entre o antigo Distrito Federal e o antigo estado do Rio, imposta pela ditadura em 1975 a pretexto de criar um “poderoso estado” capaz de enfrentar o colosso paulista.

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A incapacidade gerencial do novo estado, entregue às elites cariocas e fluminenses acostumadas à tutela federal e incapazes de se orientarem conforme uma lógica “estadualista”, comprovou-se de modo evidente ao longo das décadas de 1970 e 1980. Em primeiro lugar, com a rápida perda da antiga centralidade política e econômica da “Velhacap” para Brasília e São Paulo, respectivamente: era o famoso “esvaziamento do Rio”. Em segundo lugar, pela gradual deterioração dos serviços urbanos antes sustentados pelo governo federal: educação, saúde e segurança pública. Foi devido a esse fracasso que, há cerca de 20 anos, a União começou a voltar ao município para promover intervenções “brancas” na saúde e na segurança do Rio, principalmente em época da eleição.

A recente decretação de uma intervenção federal formal – a primeira desde 1966 – representa apenas o ponto mais baixo e crítico desse longo processo de degradação, iniciado pelo abandono da antiga capital sem qualquer plano ou indenização que lhe permitisse andar pelas próprias pernas e depois aprofundado com a criação, pela fusão com o antigo estado do Rio, de um estado artificial e anômalo, que nunca conseguiu forjar elites políticas entrosadas capazes de governá-lo de modo eficiente. O problema, porém, exige solução duradoura, que não é nem pode ser uma intervenção federal que, por sua própria natureza, é necessariamente excepcional. E a atual intervenção se limitará a promover uma melhoria momentânea, que cessará quando ela terminar, como das outras vezes.

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O Rio tem mais servidores federais que estaduais. Tem mais servidores federais que a própria Brasília

As esperanças de recuperação do estado do Rio são escassas porque, conforme já explicado detalhadamente no artigo anterior, não se trata de um estado natural. Ele é anômalo. Nasceu imposto de cima para baixo no único caso da história brasileira de extinção de um ente federativo por fusão obrigada com outro. Sua capital estadual não é percebida, nem por seus habitantes, nem pelos demais brasileiros, como símbolo local, mas nacional. É a única vitrine do país. Tudo o que nela acontece repercute imediatamente (e exageradamente) na imagem do país, de forma positiva (como os Jogos Olímpicos) ou negativa (os arrastões, as balas perdidas, a favelização).

Além de “nacional” simbolicamente, a capital do estado também destoa das demais por sua dimensão claramente “federal”: o Rio tem mais servidores federais que estaduais. Tem mais servidores federais que a própria Brasília, capital oficial. Cinquenta órgãos federais continuam na Velhacap, como a Casa da Moeda, o Arquivo Nacional, a Fiocruz, a Petrobras, a Funarte, a Biblioteca Nacional e o BNDES. A União continua sendo a maior proprietária de imóveis do município: são mais de 1,2 mil. Para se ter uma ideia aproximada do que é o estado do Rio, é preciso imaginar um estado de porte médio, como o Espírito Santo, que tivesse por capital não Vitória, mas uma metrópole grande como São Paulo, cuja região metropolitana abrigasse 75% de sua população e na qual, paradoxalmente, a União estivesse tão presente quanto está em Brasília.

Diante desse quadro, que solução seria possível para resolver a situação do Rio, que há pelo menos três décadas se tornou uma dor de cabeça ao país? Ora, analisando friamente todos os componentes desse complexo quadro, não é difícil concluir que o único remédio lógico para a crise fluminense é, por incrível que pareça, de grande simplicidade: acabar com o atual estado do Rio. Em outras palavras, aceitar o fracasso do experimento institucional. Isto feito, deveriam ser tomadas duas providências. A primeira delas passaria por voltar a separar aquilo que a ditadura juntou: o antigo estado do Rio de Janeiro da cidade do Rio de Janeiro, restabelecendo a sede do governo estadual em Niterói. A segunda providência seria devolver a antiga capital da República ao controle do governo federal.

Do mesmo autor: A intervenção federal no Rio e a especificidade da crise fluminense (16 de fevereiro de 2018)

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Leia também: Marielle e a anomia carioca (editorial de 15 de março de 2018)

Essa devolução poderia ser feita, hipoteticamente, de duas formas. A primeira seria pela restituição, ao atual município do Rio de Janeiro, de seu antigo estatuto de distrito federal, de que gozou desde 1889 até 1960. Nesse caso, o Brasil passaria a ter dois distritos federais, o de Brasília e o do Rio, regidos juridicamente de forma análoga, cabendo à União gerenciar sua segurança pública, sua saúde e sua educação. Na medida em que o governo federal até hoje divide sua administração entre as duas cidades, dar-lhes tratamento semelhante não seria nenhuma aberração.

A segunda forma de devolver a cidade do Rio ao controle federal, por sua vez, passaria pela criação de um ente federativo sui generis, o da Cidade Federal do Rio de Janeiro, dotado de um estatuto específico, por meio do qual a União se limitaria a assumir a gerência da segurança pública, tornando permanente o que hoje está provisório por conta da intervenção federal. Aqui também não há novidade: é o modelo que foi adotado para reger as antigas capitais da Alemanha Ocidental (Bonn) e da Rússia (São Petersburgo). Como antiga capital, o Rio bem mereceria estatuto semelhante.

Em qualquer dos dois casos, a cidade do Rio de Janeiro ficaria muito mais bem equipada para promover políticas essenciais à reversão da decadência desencadeada pela mudança da capital para Brasília – a primeira delas, a criação de um ambiente de segurança minimamente favorável à vida pública e aos negócios. Do ponto de vista tributário, o novo distrito ou cidade federal passaria a recolher não só os atuais impostos municipais, como o IPTU, o ISS e o ITBI, mas também os estaduais, no perímetro de seu território, como o ICMS e o IPVA. Além do patrimônio do atual município do Rio de Janeiro, o futuro “segundo DF” ou Cidade Federal passaria a administrar o patrimônio do hoje estado do Rio situado dentro dos seus limites, incluindo as escolas públicas, as atuais universidades estaduais e todos os equipamentos culturais e esportivos. Por sua vez, o governo federal poderia transferir para suas centenas de imóveis vazios no Rio inúmeras autarquias e fundações instaladas em edifícios alugados em Brasília, como medida de economia.

A situação da antiga capital da República não interessa apenas aos cariocas e fluminenses, mas a todo o Brasil

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A reconversão da cidade do Rio de Janeiro em área federal também beneficiaria o estado do Rio. Novamente assentado em Niterói, seu novo governo estadual poderia voltar suas atenções para o interior (especialmente para São Gonçalo, na região metropolitana de Niterói), pondo fim à drenagem do contingente policial fluminense pela atual capital. Em termos tributários, o estado pouco sofreria, porque hoje há uma equivalência entre a riqueza produzida entre a capital e o interior. Além disso, na medida em que a maioria esmagadora dos servidores federais ficaria fora de sua jurisdição territorial, do outro lado da Baía de Guanabara, o estado do Rio ficaria, porque mais homogêneo, mais assemelhado aos outros estados da Federação. A probabilidade de voltar a ser um estado governável aumentaria, assim, com o fim da confusão entre cariocas e fluminenses.

É verdade que a atual área da cidade do Rio excede os limites do município homônimo. Nesse caso, bastaria incorporar ao novo distrito ou cidade federal os municípios limítrofes da Baixada Fluminense, o que poderia ser feito por plebiscito. No mais, o Estatuto das Cidades e o das Metrópoles já oferecem mecanismos de colaboração em matéria de saúde e transporte que poderiam ser aproveitados pelos novos governos estabelecidos nas cidades do Rio e de Niterói, de modo análogo ao que existe hoje entre Brasília e Goiânia.

Tudo pesado, a proposta de conversão da cidade do Rio em um segundo distrito ou cidade federal, cuja segurança pública voltasse a ser gerida pela União, seria a melhor solução para o desgoverno que se apossou da região faz mais de 30 anos. A medida estancaria a deterioração urbana e aproveitaria a posição sui generis ocupada pela cidade no conjunto da federação, dando-lhe um estatuto condizente com sua condição de símbolo do país e sede secundária da administração federal. Por sua vez, livre do fardo da ciclópica capital, o estado do Rio voltaria a ficar mais homogêneo (como era, de fato, até a fusão, em 1975) e recuperaria sua capacidade de operar de modo similar aos demais estados da Federação.

Goste-se ou não, é preciso reconhecer que, por tudo que representa, do ponto de vista histórico, cultural e simbólico, a situação da antiga capital da República não interessa apenas aos cariocas e fluminenses, mas a todo o Brasil. Por ser valiosa demais para ficar nas mãos (incompetentes) de seus governantes, a cidade do Rio de Janeiro precisa ser o quanto antes retomada pela nação, que assim teria de volta, a custo globalmente muito baixo, sua principal sala de visitas e seu principal cartão postal. E o Rio deixaria, de uma vez por todas, de ser o que se tornou: matéria de preocupação, raiva ou piedade, tanto dos brasileiros dos demais estados quanto da mídia internacional. Valeria a pena tentar.

Christian Edward Cyril Lynch é professor do Iesp-Uerj e da Fundação Casa de Rui Barbosa.