Não importa a opinião que se tenha sobre Hugo Chávez, importa que graças a ele a América Latina ancorou nas primeiras páginas da imprensa mundial e assim ficará por muito tempo. A América Latina precisa de Chávez, seja ele santo ou demônio, caudilho ou presidente democrático. Chávez é o elemento diferenciador numa paisagem aparentemente indiferenciada.
Apesar da intensa luminosidade, as imprecisões dominam o vasto território ao sul do Rio Grande. Não há sombras, mas a exuberância é tão intensa, tantas as possibilidades de variações e matizes que o subcontinente poderia ser apelidado de Terra das Incertezas, dos Equívocos, ou simplesmente Absúrdia.
Chávez é o seu produto político-antropológico mais emblemático, variação miniaturizada de Fidel Castro em que se agigantam seus defeitos e somem as virtudes. Melhor mix de Perón com Brizola jamais poderia ser inventado. Substância contrastante que um Evo Morales é incapaz de utilizar e da qual o presidente Lula sabe servir-se, embora em doses homeopáticas.
Em seguida ao quarto centenário da descoberta de Colombo (1892), início do século 20, viajantes europeus tentaram entender o que então se chamava de América do Sul. Um deles foi o jornalista-político Georges Clemenceau (aquele que pouco antes produzira a manchete mais famosa da história do jornalismo, JAccuse, "Eu Acuso"), outro foi o filósofo-andante, o conde Hermann Keyserling.
Mas quem melhor compreendeu as dimensões desta Absúrdia e a personificou em carne e osso foi Fortino Mário Alfonso Moreno Reyes (19111993), Mário Moreno no México, Cantinflas para o resto do mundo.
Charlie Chaplin o classificou como "o melhor comediante da terra", os críticos o etiquetaram como o "Chaplin do México". Cotejo insuficiente, como todos: Carlitos era o trapalhão que fazia rir pelo gesto silencioso, já as gargalhadas provocadas por Cantinflas, ao contrário, originavam-se numa algaravia: palavreado confuso, disparatado, torrencial, interminável e, no fim, eficaz. Ganhava sempre.
Registram seus biógrafos que o estilo foi criado quando, ainda ator-ambulante, um dia esqueceu a sua fala e para evitar o silêncio, soltou o verbo sem se importar com o sentido do que dizia falou, falou, falou e foi ovacionado.
Criou um estilo e tornou-se o símbolo do pobretão capaz de enganar a todos com esta doida eloqüência. Conservador em matéria política projetou-se mundialmente como o bufão despossuído capaz de superar qualquer dificuldade graças à lábia labiríntica venceu o touro na arena e os gângsteres em Chicago.
A rigorosa Real Academia Espanhola legitimou o verbo cantinflear (algo como embromar) e cantinfleada (lenga-lenga confusa). Estudiosos o designaram como "representação da caótica modernidade mexicana" ou como "o pobretão que triunfa sobre os poderosos". Lingüistas o vêem como "Robin Hood do idioma", o vagabundo com as calças sempre caindo que tirou das elites o domínio da palavra. Através da não-palavra.
Apesar do enorme sucesso nos Estados Unidos, Cantinflas foi um fenômeno latino-americano. Hilariante e intraduzível, doido, porém adorado. Metáfora da esperteza inofensiva, retrato do espertalhão cordial. Malandro amigo, otimista e generoso.
A criatura engendrada por Mário Moreno tem algo de paradigmático, razão pela qual seus 34 filmes continuam fazendo sucesso. Ficou talvez menos datado do que outros famosos comediantes porque a universalidade de Carlitos e Buster Keaton diluiu-se no processo de globalização, enquanto o caráter nacional (ou continental) de Cantinflas continua em estado puro, intocado.
Compará-lo com Chávez seria injusto. Para ambos.
Alberto Dines é jornalista.