Em fins do ano passado os meios de comunicação anunciaram que o general da reserva do Exército Fernando Azevedo havia sido indicado para o cargo de diretor-geral do Tribunal Superior Eleitoral. Em janeiro deste ano, ele participou de uma reunião liderada pelo ministro Edson Fachin para tratar das eleições que ocorrerão em outubro. Recentemente, porém, desistiu do cargo pela necessidade de cuidar de sua saúde. Vale lembrar que o referido general já havia ocupado o cargo de assessor especial do Supremo Tribunal Federal quando seu presidente era o ministro Dias Toffoli. Cabe evocar também suas palavras enunciadas às vésperas do escrutínio de então, ressaltantes da tolerância, da conciliação e do elogio ao voto como arma poderosa e legítima da democracia.
Diversas reações favoráveis e contrárias foram externadas quando ocorreu o vaticínio no ano passado. Dentre as favoráveis, falava-se em “esvaziar a narrativa de que o TSE conspira contra a reeleição do atual presidente”, que “o mencionado general é um servidor público exemplar”, “o que importa é que o cargo é de natureza civil”, “temos de olhar para as qualidades pessoais”. Dentre as contrárias, dizia-se que “os Tribunais Regionais se sentirão autorizados a buscar assessoria militar”, “é um mau exemplo para o sistema de Justiça, haja vista que nem na época de exceção, no regime militar vivenciado pelo Brasil, isso ocorreu”, “em democracias estáveis ministros da Suprema Corte não precisam se preocupar em acalmar golpistas”.
Apesar dessas manifestações contrárias e favoráveis, é possível inferir que tal nomeação tem muito a ver com o que se passa na subjetividade dos ministros. De acordo com alguns articulistas políticos, eles já internalizaram uma séria preocupação com a temperatura política do país que deverá emergir no decorrer da campanha eleitoral e com os resultados da apuração das urnas. Já imaginaram a provável situação do não reconhecimento por parte do chefe da nação em caso de derrota, com ataques às instituições e estímulo aos seus extremados seguidores, entre os quais se encontram policiais, a avançar sobre o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral. Parece que se trata de uma medida preventiva, pois o maléfico exemplo de Trump, liderando a invasão do Capitólio, deve estar pulsando no imaginário dos juízes.
A história de nosso país, pelo que se sabe, não registra a presença de militares em funções gerenciais previstas nos tribunais eleitorais. O que ela aponta é a interferência dos fardados em escrutínios nacionais por meio do alcunhado “poder moderador”, pela concessão do aval para a eleição de deputados federais, estaduais e vereadores durante a ditadura e pelo fornecimento de apoio logístico. Quanto a ele, o comando do Exército recentemente determinou que os exercícios previstos para este ano se encerrem em setembro, para deixar a tropa disponível à Justiça Eleitoral. Vale citar também a equipe castrense da área de cibersegurança que integra a Comissão de Transparência das Eleições, cujo representante é o general Heber Portella, atual Comandante da Defesa Cibernética.
No âmbito internacional a literatura específica também não faz menção a esta presença. De modo equivalente ao nosso país, tem-se o caso singular da Turquia, em 2007, cujo Estado-Maior das Forças Armadas manifestou-se contrário à eleição de Abdullah Gul; e o caso específico dos norte-americanos que costumam usar o US Cyber Comannd na segurança eleitoral, algo reiteradamente criticado pelos estudiosos dos assuntos da caserna.
Embora o receio dos ministros tenha base real, a agora derrogada ida do general Azevedo ao TSE pode revelar outros sentidos e outros fatores intervenientes não expostos por aqueles que se manifestaram. Um deles diz respeito ao status dos militares no âmbito social. Sabe-se que, no transcorrer do tempo, criou-se e sedimentou-se a reprovável concepção de que os fardados são mais qualificados que os paisanos. Esta ideia começou a ganhar vida na Academia Imperial Militar, expedidora dos títulos de bacharel e doutor; incrementou-se com as reorganizações modernizadoras nos primórdios do século 20; e solidificou-se pelo prosseguimento de uma formação acadêmica de alto nível ao lado de um rigoroso código de ética norteador do modo de pensar, sentir e agir, porém favorecedor da instauração dos indesejáveis sentimentos messiânico e de autoestima.
Outro fator refere-se à criticável sensação dos fardados segundo a qual eles constituem um grupo que diuturnamente deve zelar pela tutela do Estado. Um terceiro mostra o tradicional prestígio das Forças Armadas no interior da sociedade já sobejamente evidenciado, o qual, porém, sofreu alguns arranhões pela indevida aproximação com o primeiro mandatário.
Também representa uma barreira simbólica a favor da democracia por parte dos militares exposta diversas vezes durante estes anos em que o atual presidente da República tentou, por vários meios, atraí-los ao seu projeto populista de governo. E, caso a presença do referido general tivesse sido mantida, ela seria admissível neste anômalo momento histórico causado pela ímpia omissão das elites. Entretanto, é preciso ressaltar que a nomeação revela que nossa democracia, apesar de dotada da capacidade de repelir ataques, ainda mostra dependência dos militares. Considerando que tal dependência é imprópria e incabível, necessita ser superada rapidamente, ainda que isto não signifique uma dispensa terminante dos seus préstimos. Por sua vez, certos pensamentos, afetos e condutas dos integrantes da caserna precisam ser revistos e alterados para se ajustarem às exigências do regime democrático.
Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em Educação e autor de “Democracia e Ensino Militar” e “A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania”.