Em 1967 Milton foi convidado pelo governador Paulo Pimentel para compor comitiva a Brasília. Próceres do Paraná estavam no voo e perguntaram se Milton aceitaria indicação para o cargo de juiz federal
Da prosa brotam memórias do balcão da farmácia que dava vista para o Fórum de Mandaguari. Olhos curiosos acompanhavam a chegada e saída dos juízes. A postura austera chamava a atenção do balconista que começou a se interessar pelo trabalho daqueles homens que granjearam a admiração da comunidade. Imberbe, fez a primeira visita ao Fórum; entre alegre e incrédulo, foi recebido pelo Juiz de Direito. Da conversa estão gravadas as imagens dos autos, a indagação sobre a dificuldade para decidir os casos complicados e a resposta simples vinda do magistrado que, segurando exemplar do Código de Processo Civil, disse que tudo estava ali, na lei. Nesse momento decidiu: serei juiz.
A rotina da vida foi orientada para o projeto de ingressar na magistratura. O segundo grau foi feito em Curitiba. O Colégio Estadual do Paraná acolheu o jovem magricelo, pé-vermelho. A família, partícipe do sonho, deu o impulso inicial, mas a manutenção na capital dependeria de encontrar emprego. A oficina mecânica na Avenida João Gualberto foi porto seguro para garantir renda. Limpar a graxa das peças era a principal tarefa. A mente avaliando que era preciso encontrar outra atividade que assegurasse mais tempo ao estudo para não desviar do projeto. O dom da voz, sílabas bem pronunciadas, a sofisticação do vocabulário, abriram acesso ao microfone da PRB2, Rádio Clube Paranaense. O interiorano se tornou apresentador do Prosdócimo Informa, versão local do Repórter Esso. Quatro apresentações diárias de cinco minutos cada. Com isso, a sobrevivência e o tempo para estudar estavam garantidos.
A rádio e a faculdade eram próximas. A caminho da pensão, Milton se encontrava com o estudante de Odontologia, José Richa, que morava pouco mais adiante. Passavam defronte a uma quitanda, na qual havia bananas pendendo do cacho e ambos, sem dinheiro, as contemplavam com água na boca. Nessas caminhadas nasceu a designação de Milton, dentre outros, como assessor político da campanha de Richa à presidência da União Paranaense dos Estudantes.
Da amizade com José Richa resultaram contatos com muitos políticos paranaenses; dentre eles, Bento Munhoz da Rocha Neto, ex-governador, ex-ministro de Estado, deputado federal num tempo em que a Câmara dos Deputados era habitada por nomes da grandeza de Prado Kelly, Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto, Ulysses Guimarães, Carlos Lacerda, Afonso Arinos, Franco Montoro, Tancredo Neves. Na semana acadêmica de 1957, Milton fez a saudação a Bento que proferiria conferência. Ciente do seu talento, Milton quis ir além da formalidade de ler monocordicamente o curriculum do apresentado. No salão nobre da Faculdade de Direito de Curitiba, composta a mesa, a voz que fazia sucesso no rádio tonitroa com impacto: "Nego-me a apresentar Bento Munhoz da Rocha Neto, nego-me, nego-me." O auditório se tensiona, o desconforto aparece na face dos professores e Milton, dono da atenção dos presentes, faz a pausa que mantém o suspense, para seguir dizendo: "Porque apresentar Bento constituiria insanável redundância". O momento mágico para o estudante ficou na memória do político famoso. Essa certeza Milton teve quando se encontraram algum tempo depois e Bento efusivamente se lembrou do fato.
No quarto ano da faculdade, em 1957, em dissidência do Partido Acadêmico Progressista, foi candidato a presidente do Centro Acadêmico Hugo Simas. A vitória escapou, mas se ver envolvido no centro nervoso do movimento estudantil fortaleceu a personalidade para enfrentamentos que o futuro traria.
A escola de Direito, caminho para a magistratura, foi alcançada aos 22 anos. Era jovem, mas não rapazola que podia se dar ao luxo do sustento paterno. Milton era arrimo de si. A combinação dessa condição de jovem adulto e a necessidade de melhorar o sustento, fizeram brilhar os olhos quando conseguiu a admissão ao Curso de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército, em 1953. O salário do aspirante a oficial era três vezes o da rádio; foi o momento de ajudar a família que permanecia no interior.
O jovem militar esteve no movimento de novembro de 1955 comandado por Lott para assegurar a posse de JK. Visando impedir pouso ou decolagem na Base Aérea do Bacacheri, em Curitiba, Milton empunhou metralhadora antiaérea; comandou patrulha pela estrada da Ribeira; sentou guarda em Capão Bonito, sul de São Paulo, com ordem de não permitir movimentos políticos contrários à ordem constitucional estabelecida. A mão firme do magistrado, que na década de 80 determinaria o fechamento da Estrada do Colono no Parque Iguaçu, empunhou armamento de guerra numa das convulsões políticas do Brasil. A grandeza de JK esteve ao lado de Milton que cumpriu a missão sem conflito e viu os revoltosos serem anistiados.
De volta à rádio, o curso de Direito se aproxima do fim e surge o convite para advogar em Campo Mourão, município com pouco mais de dez anos de criação. À colação de grau em 18 de novembro de 1958 sucedeu a viagem de avião ao interior, com passagem doada por amigos e o bolso forrado com valor adicional dado pelo patrão no momento da demissão na rádio, suficiente para dois meses. Em janeiro de 1959 o corpo estava em Campo Mourão; a mente, absorta na expectativa do concurso para a magistratura. O destino lhe trouxe a oportunidade de atuar como advogado dativo no Tribunal do Júri, então repleto de sessões. Com o sucesso, os convites para advogar em outros temas. O concurso de 1959 foi adiado pelo Tribunal; Milton permaneceu advogando, ganhando dinheiro para se casar, comprar casa e o sonho de consumo: um Ford Coupe. Nei Braga é eleito e o Tribunal de Justiça adia o concurso de 1960. Em 1961, Milton compara o salário de juiz a sua renda de advogado. As obrigações de família falam mais alto e ele desiste de se inscrever no concurso.
Em 1962 o Partido Democrata Cristão, na voz de Armando Queiroz e Affonso Camargo Neto, o convida para ser candidato a prefeito. Juscelino Kubitschek participa do comício do candidato do PSD, ao qual compareceu a cidade inteira. Milton, em oposição, ganhou a eleição visitando eleitor por eleitor. O terreno, o Coupe, foram vendidos para custear o sustento durante o mandato. O sonho permanente da magistratura consolidou a decisão de que não haveria carreira política. Essa postura propiciou gestão rígida com os gastos públicos e, ao mesmo tempo, de excelentes resultados. Em 1966 Campo Mourão foi eleito município modelo do Paraná. Muitos foram as negativas a convites para candidatura a deputado.
Em 1967 Milton é convidado pelo governador Paulo Pimentel para compor comitiva a Brasília. Próceres do Paraná estavam no voo e perguntaram se Milton aceitaria indicação para o cargo de juiz federal. O prefeito mal tinha ideia do que se tratava e foi estudar a novel Lei 5.010/66. Nos dias que ficaram na capital, o próprio governador fez o convite e Milton aceitou. O sonho da magistratura estava prestes a se realizar. Passa o tempo, apresentam-se documentos, respondem-se indagações do Serviço Nacional de Informação; ouvindo a Voz do Brasil, soube da sua nomeação para Juiz Federal Substituto da 2.ª Vara Federal em Curitiba. Aos 35 anos, o sonho se realizou.
Ao renunciar, recebeu um Fusca da população que se cotizou para auxiliar o prefeito que empobrecera ao longo do mandato. A data, 29 de abril, é comemorada em Campo Mourão pelo Clube do Fusca. Subitamente voltamos à sala da casa na Av. Iguaçu e as reminiscências denotam os 43 anos desde que começou a morar nela; primeiro como inquilino, depois um longo financiamento habitacional para se tornar proprietário. O Fusca permanece em uso para os movimentos pela cidade. Quando o vejo estacionado na garagem dos magistrados visitantes, nas raras ocasiões que Milton vem ao Fórum, sinto a responsabilidade de judicar na mesma Vara onde ele se titularizou e permaneceu por mais de uma década dando vida à magistratura e fazendo da magistratura, a sua vida.
A conversa flui pela judicatura de primeiro grau e Milton se lembra da repercussão de decisão em ação movida pelo Coritiba Football Club versando sobre a tabela do Campeonato Brasileiro; da primeira condenação penal, no Brasil, por fraude contra a Previdência. Mídia, agitação e a afirmação peremptória: não dou entrevista, falo nos autos.
A regionalização levou Milton a São Paulo. Foi o primeiro presidente do Tribunal Regional. A Justiça Federal, ilustre desconhecida, tinha à testa magistrado com experiência política. O relacionamento com o Tribunal de Justiça foi tão harmonioso que a Corte paulista cedeu bens e serviços para o nascente Tribunal Federal. Vêm à lembrança as cerimônias nas quais o presidente do TRF estava presente e não era sequer mencionado, indo à mesa a representação da Receita Federal, Polícia Federal. À época as pessoas, quando apresentadas a magistrado federal, diziam, "Ah, entendi, o senhor trabalha na Receita Federal".
Abre-se vaga no Superior Tribunal de Justiça. Apoiadores se mobilizam. Partindo do balcão da Farmácia do pai, Milton iniciou trajetória não linear na qual amadureceu e consolidou princípios para, 50 anos depois, chegar ao cimo da magistratura, onde permaneceu por dez anos, até a aposentadoria compulsória. A firmeza moral, a densa formação cultural e política, o bom exemplo no trato das coisas públicas, ensejaram a criação de figura mítica do magistrado que serviu a nação com a pureza altiva de Quixote e a abnegação de Francisco de Assis. Milton, Quixote de Assis!
Friedmann Wendpap, mestre em Direito Público pela UFPR é juiz federal em Curitiba e diretor do Foro da Seção Judiciária do Paraná.