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– Deus nos salvou até agora. Precisamos confiar nEle.

– Mas por que Deus nos salvaria enquanto deixou os outros morrerem? Minha mãe, minha irmã, Pancho, Guido? Eles também não queriam que Deus os salvasse?

– Nós não temos como entender Deus ou a lógica dEle.

– Então por que deveríamos confiar nEle? E os judeus que morreram nos campos de concentração? E todos os inocentes mortos nas pragas, nos expurgos, nos acidentes naturais? Por que Ele voltaria as costas para essas pessoas e, ao mesmo tempo, encontraria tempo para nós?

Liliana suspirou e senti o calor de seu hálito no meu rosto.

– Você está complicando demais as coisas, disse ela com ternura na voz. – Tudo o que podemos fazer é amar a Deus, ao próximo e confiar nos Seus desígnios.

Esse diálogo é narrado na obra Milagre nos Andes, de Nando Parrado. Nando foi um dos 12 sobreviventes de um desastre aéreo ocorrido em 1972. Jovens uruguaios de um time amador de rúgbi iam para o Chile jogar uma partida. O piloto cometeu um erro e o avião chocou-se com uma montanha em uma região inóspita da cordilheira. Anos após a tragédia, Parrado resolveu contar detalhes da história.

Acompanhar toda sorte de mentiras, calúnias, palavras de ódio fez-me pensar que triste é uma vida na qual a política é vista como sentido da existência

No diálogo relatado no início, Nando descreve uma conversa com Liliana Methol. Foram as últimas palavras da mulher de 35 anos. Cerca de meia hora após a conversa, uma avalanche soterrou a aeronave e mais alguns sobreviventes do desastre morreram.

Liliana e o marido, Javier, eram torcedores do time. Contudo, mais que acompanhar a partida, desejavam alguns momentos a sós. Antes da viagem, deixaram os quatro filhos pequenos com os avós. Após a queda do avião, Nando relata que ela estava muito preocupada com os filhos, mas essa preocupação não a impedia de fazer valer com atos as suas últimas palavras: “Ela se tornou uma segunda mãe para todos nós, e era tudo o que se podia desejar de uma: forte, terna, amorosa, paciente e muito corajosa”, escreveu Nando Parrado.

Essa história veio à minha memória por três motivos. Em primeiro lugar, e mais mundano, por causa das eleições. Essa época é sempre muito conturbada, mas desta vez foi feroz. Acompanhar toda sorte de mentiras, calúnias, palavras de ódio fez-me pensar que triste é uma vida na qual a política é vista como sentido da existência. É um erro diminuir a sua importância, mas longe de mim tê-la como o sentido último da vida.

Outro motivo que me fez recordar o acidente dos Andes foi a proximidade do feriado de Finados. Trata-se de um dia especial para nos lembrarmos das pessoas importantes que passaram pela nossa vida e que deixaram saudade. Lembro-me da poderosa fé da minha avó e da alegria do meu cunhado, que nos deixou tão precocemente, aliás com a mesma idade de Liliana Methol, 35 anos.

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O terceiro motivo foi ter acompanhado, ainda que a uma certa distância, a vida de um grande homem. Antônio Alexandre de Morais, cidadão aqui de Campinas, faleceu aos 59 anos. Talvez sua existência se molde aos versos que Fernando Pessoa escreveu a respeito de dom Sebastião, rei de Portugal: “Louco, sim, louco, porque quis grandeza / Qual a Sorte a não dá”. Teve 11 filhos. Em uma época materialista como a nossa, quantas vezes não deve ter escutado que era uma loucura, que é impossível dar uma vida boa para 11 bocas? Quantos não devem ter pensado se tratar de um fanático? Mas não era nada disso. Era um homem que, como Liliana, buscou “amar a Deus, ao próximo e confiar nos Seus desígnios”. O grande número de pessoas presentes ao funeral demonstrou que uma vida dedicada ao bem vale a pena. Afinal, como concluiu Pessoa no poema citado, “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”

Como bem disse Liliana Methol a Nando Parrado, não sabemos a lógica de Deus. Por vezes, pode parecer injusta; outras, até cruel. Contudo, nossa visão sobre os acontecimentos é muito limitada. Para mim, que sou míope, penso que a vida é como estar sem óculos ante uma belíssima paisagem. É possível perceber estar perante algo belo, mas não perceber toda a sua grandiosidade.

Somente quando pessoas de uma bondade ímpar, como Liliana e Antônio Alexandre, encerram a sua carreira, percebemos com mais nitidez que a vida “é bonita, é bonita e é bonita”.

Eduardo Gama, mestre em Literatura, é professor, jornalista e publicitário.
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