A MP 966/20 e a tentativa de restrição da responsabilização dos agentes públicos é apenas um novo capítulo de uma antiga crise institucional. José Ignácio Botelho de Mesquita, grande estudioso do Direito Processual e incansável defensor dos direitos e liberdades civis, já a descrevia em 1999. Então, falava que o Judiciário sofria uma crise de confiança institucionalizada, pois Executivo e Legislativo criavam formas de esquivarem-se da força de suas decisões. O que talvez explique hoje a busca do Judiciário por decidir sobre os atos de gestão de um poder (o Executivo) e criar normas jurídicas no lugar do outro (o Legislativo).
Por isso, ver uma medida provisória que trata de responsabilidade civil dos agentes públicos por seus atos, ou omissões, durante a pandemia e em meio a tantas decisões avaliando a oportunidade de medidas administrativas adotas para lidar com ela não surpreende, embora seja ao mesmo tempo surpreendente.
Explica-se. Não surpreende, pois parece um ato do Executivo que responde à judicialização das decisões que toma, quando em regra não se poderia em juízo avaliar “oportunidade e conveniência” dos atos administrativos discricionários adotados, apenas sua legalidade, ainda que sob o enfoque da eficiência e motivação. Não são poucas as decisões judicias que versam, por exemplo, sobre a instituição de quarentena, lockdown, rodízio, restrições de circulação, requerimento de informações que embasam a adoção de tais ou quais medidas previamente para que sejam liberadas, matérias que seriam reservadas à competência do Executivo.
Por outro lado, a MP é surpreendente, porque avança sobre matéria regida por norma constitucional (no caso, o artigo 37, §6.º) e sem que se note “urgência ou relevância” a justificar a sua edição. Afinal, o chefe do Poder Executivo só pode editar medidas provisórias quando a aprovação de lei pelo Legislativo falhe em responder às circunstâncias em tempo (urgência) e o assunto tenha especial e anormal importância (relevância), que assuntos ordinários e passíveis de serem objeto de lei não teriam, segundo o artigo 62 da Constituição.
Mas aqui, e sobre esse tema, já existe norma jurídica, aliás constitucional (o referido artigo 37, §6.º), e o assunto não tem especial relevância. Nem tudo que acontece em tempos de pandemia e distanciamento social é urgente e relevante, apenas aquilo que seja indispensável para salvaguardar a vida, a saúde e o funcionamento o Estado e dos seus serviços essenciais. Avaliar a responsabilidade dos gestores públicos pelos atos que praticam nesse período certamente não é urgente ou relevante, no sentido jurídico. Portanto, não parece que a MP 966 respeita os critérios constitucionalmente previstos para que fosse validamente editada. Além disso, se analisado o seu conteúdo, vê-se que restringe responsabilidade que foi imposta de maneira mais ampla pela própria Constituição Federal.
A responsabilidade (civil) da administração pública é em regra objetiva, independente de culpa ou dolo, pelos danos provocados a terceiros, mas é subjetiva (dependente da avaliação de culpa ou dolo) a do agente público, segundo o artigo 37, §6.º da Constituição. E também é subjetiva sua responsabilização administrativa (responsabilização dentro dos órgãos administrativos pelos atos que pratica), não se fazendo qualquer restrição a culpa grave, ou “erro grosseiro”, como quer a MP.
Ora, mas se é assim, onde inova a MP 966/20? E poderia ela fazê-lo? Percebe-se uma tentativa de restringir a responsabilidade do agente público na modalidade culposa, ou seja, caso se conduza ele com negligência, imprudência ou imperícia, porque impõe, para sua responsabilização, que pratique “erro grosseiro”, ou seja, “o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia” (artigo 2.º da MP). Em outras palavras, quer restringir o campo da responsabilização pessoal do agente público ao dolo (agir com intenção de causar dano) e à culpa grave (agir, ou omitir-se, de forma especialmente negligente, imprudente ou imperita). E isso justamente quando a intervenção do Estado é a única ferramenta capaz de salvaguardar a vida e a saúde, além de evitar um caos econômico sem precedentes.
É aqui que se encontra o principal problema da norma editada. Ao restringir ainda mais a responsabilidade do agente público, ela contraria a Constituição Federal, ou seja, não poderia fazê-lo. Além disso, está incentivando o mal agir ou a omissão; lembre-se a bem conhecida “equação” de Klitgaard, segundo a qual “corrupção = monopólio + discricionariedade – responsabilidade”.
Para evitar, assim, os nefastos efeitos que essa MP poderá causar, resta-nos confiar no Legislativo, recusando aprovação à norma, ou no Judiciário, dessa vez agindo em cumprimento de sua missão regular, para afastar-se de um policiamento dos motivos por trás de atos do Executivo, e avaliar o cumprimento da legalidade, expurgando essa medida provisória por falta de urgência e relevância, ou pela restrição de responsabilidade imposta de forma mais ampla na própria Constituição Federal. Com isso, espera-se que se diminuam as possibilidades de obtenção de vantagem ilícita que já estão em curso e se aproveitam do “estado de exceção” criado pela crise sanitária, política e econômica atual, pois restringir responsabilidades é sempre incentivar o agir inadequado e contribuir para o aumento da corrupção.
Taarik Castilho é advogado com atuação na área de Contencioso Cível.
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