“Chora como uma mulher pelo que não soubeste defender como um homem”, teria dito a sultana Aixa a seu filho, Boabdil, último soberano islâmico de Granada, quando ele entregou as chaves de Alhambra aos Reis Católicos, em janeiro de 1492. O homem guerreia; a mulher chora – eis um paradigma clássico contestado pela tradição feminista, que o interpretou como narrativa patriarcal destinada a reforçar os papéis sociais estabelecidos. Hoje, porém, como sugere o caso de Marta Rovira, uma vertente do feminismo pós-moderno contesta a contestação, celebrando o pranto feminino.
Rovira, a número dois da Esquerda Republicana Catalã (ERC), um dos partidos independentistas da Catalunha, cultiva o hábito de chorar – especialmente diante das câmeras. As lágrimas escorrem quase sempre que é contrariada. Ela desabou em prantos quando um juiz determinou a prisão de Oriol Junqueras, o número um do ERC. Fez o mesmo antes, no 26 de outubro, numa reunião do núcleo político separatista, diante do ensaio de um recuo do aliado Carles Puigdemont, que se inclinava a desistir da declaração unilateral de independência (DUI). Na ocasião, abandonou o local aos soluços e mobilizou a militância para pregar-lhe o rótulo de traidor. O expediente deu certo: Puigdemont desistiu de desistir, e a maioria separatista aprovou a DUI no Parlamento regional.
O “lugar de fala” não é mais que o choro conceitualizado
A mulher que chora declara-se feminista. No Twitter, proclamou que a sonhada república catalã “é feminina e feminista ou não vale a pena”. Suas repetidas crises de choro provocaram críticas, inclusive no interior do ERC. Então, militantes ligadas a ela reagiram, classificando-as como pútridas manifestações de machismo e explicando que mulheres fazem política de um modo próprio, empapado de emoção e sensibilidade. O pranto, aí, não seria um traço singular da personalidade de Rovira, mas um marcador diferencial positivo: o sinal de uma superioridade moral.
O “lugar de fala” não é mais que o choro conceitualizado. A expressão, em voga nos círculos neofeministas (e entre os racialistas), normatiza os graus de legitimidade do discurso e estabelece regras sobre quem deve falar, quem deve assentir e quem deve calar. O “lugar de fala” estaria inscrito no corpo: só mulheres têm plena legitimidade para pronunciar-se sobre assuntos relativos a mulheres, assim como apenas negros podem aspirar à autenticidade quando o tema é racismo. Diante de um discurso que emana do corpo, de que vale o argumento? O diálogo humano perde universalidade, fragmentando-se em guetos autorizados com fronteiras de gênero e/ou “raça”.
Supostamente, a distinção do “lugar de fala” sustenta-se sobre uma experiência vivida de discriminação e opressão. De fato, a fala legítima fica restrita aos ativistas: às mulheres e negros que rejeitam os dogmas dos respectivos movimentos será atribuída uma “falta de consciência” ou, pior, uma “falsa consciência”. Nos Estados Unidos, alegando o “lugar de fala”, neofeministas recusam-se a debater com homens e, quando podem, impedem a presença de representantes do gênero “errado” em seminários consagrados à aventura histórica das mulheres. A prática, obviamente, já desembarcou no Brasil.
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Camille Paglia, uma feminista à moda antiga, denunciou há um quarto de século a ideologia sexual do feminismo pós-moderno, qualificando-a como “repressiva, puritana e fóbica” (Em Sex, Art and American Culture, de 1992). Meses atrás, insurgindo-se diante da política do vitimismo, das lágrimas e do soluço, lembrou como as “idosas mulheres italianas” da sua infância, “muitas delas viúvas vestidas de preto”, eram “valentes e destemidas”. “Não mexa com elas – ou elas te nocauteiam ou te ensurdecem com uma voz que atravessa muros!” Paglia repudia o “lugar de fala”. No seu diagnóstico implacável, o feminismo pós-moderno “não é feminismo, mas neurose e histeria”.
Acho que ela tem razão – mas não viu tudo. O “lugar de fala”, uma invenção universitária, funciona eficientemente como estratégia de reserva de mercado. A cisão doutrinária com o universalismo protege um mercado de convites, posições acadêmicas, bolsas e empregos. O problema surge com as implicações lógicas da operação protecionista. Se as mulheres têm o monopólio do discurso sobre mulheres, unicamente mulheres negras podem falar sobre mulheres negras e apenas mulheres negras homossexuais podem falar sobre mulheres negras homossexuais – e assim sucessivamente. As políticas identitárias sempre admitem novos recortes, delimitando guetos cada vez mais estreitos.
O paradigma clássico aparece na Guernica, de Picasso. No centro da tela, um guerreiro morto e desmembrado jaz sob o cavalo agonizante. Ao redor, choram as mulheres, únicas sobreviventes. O pranto assinala, ali, a magnitude da tragédia. Já o choro tático de Marta Rovira pertence aos domínios da farsa – e de uma farsa autoritária. Suas lágrimas servem para fazer cessar o argumento, suspender o debate, congelar a divergência. Ela chora para falar sozinha. É isso que almeja o feminismo contemporâneo?