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| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

A educação musical deveria ser um tema de primeira ordem nos debates acerca da formação intelectual, moral e cívica da juventude. A negligência nessa importante vereda do processo formativo dos jovens serve a propósitos estratégicos, tanto quanto sua acurada organização em forma de currículo escolar.

Observamos, hoje em dia, uma grande preocupação de pais, professores, familiares e educadores com a educação infantil, pois todos percebem que tudo vai de mal a pior, algo está muito errado, embora raramente alguém se aproxime do correto diagnóstico da situação.

Ninguém tem coragem de enunciar publicamente que vivemos em uma era de completa degradação cultural, do que são exemplos tão significativos quanto grotescos as modas musicais enfiadas goela abaixo pela grande mídia às massas inertes, que estão muito longe de esboçar qualquer forma de reação a tão bisonho espetáculo.

As consequências da vertiginosa queda do nível qualitativo-musical são evidentes em nosso país, embora não se trate de fenômeno exclusivo destas terras, pois a queda da qualidade na produção e no gosto musical é um fenômeno ubíquo, ou seja, está acontecendo em todos os lugares do mundo, ao mesmo tempo, por força da tão propalada globalização. Por isso, grande parte do trabalho do educador hodierno é justamente empreender esforços no sentido de elevar o nível cultural e o gosto musical da juventude, vez que a situação de quem já é adulto configura caso de difícil solução, devido ao acúmulo de péssimas influências midiáticas ao longo da vida.

As obras dos grandes mestres da música universal são todas estruturadas a partir de princípios fundamentais como equilíbrio, harmonia, simetria, clareza e perfeição formal

É preciso trabalhar a música, portanto, desde a educação infantil, em tenra idade, para que o jovem não seja desencaminhado pelo turbilhão de excrescências musicais. Para isso é preciso aplicar “vacinas” de maneira sensata, apropriada e construtiva.

É exatamente este o cerne do pensamento grego acerca da educação musical: a música deve ser trabalhada desde a primeira infância com repertório bem estruturado, a fim de ordenar a alma do infante, de modo que seu intelecto seja maximamente desenvolvido no âmbito escolar. Não foi por acaso que a Grécia Clássica legou à humanidade a filosofia, a medicina racional, a lógica, a metafísica, o método científico, disciplinas do saber que foram e são os verdadeiros sustentáculos da nossa cultura ocidental, nas quais ainda nos baseamos para estruturar a sociedade, muito embora hoje exista um tremendo esforço em sentido contrário, que visa destruir tais colunas para colocar no lugar experimentalismos que induzem a juventude à loucura.

É mais do que óbvio que não se deveria induzir crianças à loucura, em especial nas primeiras faixas etárias, nas quais elas são muito flexíveis e amoldáveis, em especial entre zero a 5 anos. Mas é exatamente o que hoje ocorre no âmbito do ensino das artes e da música em muitos contextos Brasil afora, por obra da tão louvada ditadura do relativismo. Ora, o principal legado da filosofia grega para a humanidade foi justamente ter desenvolvido um eficaz aparato para combate ao relativismo, no qual a educação musical assume importante papel: sabiam os gregos que o que uma criança escuta e apreende nos seus primeiros anos de vida vai ser absolutamente determinante para todo o seu desenvolvimento intelectual, físico e moral, o que vai determinar, em última instância, qual tipo de sociedade será constituída a partir da reunião dos indivíduos educados em tais princípios.

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Qual seria, portanto, a vacina contra o relativismo que tem destruído o gosto musical e a formação intelectual da juventude nos dias atuais? A música clássica ocidental, que chamo de “música universal”, é o repertório mais propício ao desenvolvimento das boas virtudes na infância e na juventude, porque se trata do repertório musical que foi desenvolvido exatamente como consequência do modo grego de pensar, de contemplar e de conceber a realidade, modo este que foi sucessivamente aprimorado pelas culturas romana e cristã.

Mas que modo é este de pensar que foi transplantado para a música ocidental e que tem esse tremendo poder de orientar a alma da criança e do jovem para o bem? O método dialético desenvolvido por Sócrates e Platão está na base do desenvolvimento da forma musical, a partir do Renascimento, época na qual o pensamento grego adquire grande importância na cultura europeia, embora tal influência tenha sido maximizada no período correspondente ao classicismo (aproximadamente entre 1750 e 1820), o que engendrou as mentes geniais de gigantes da composição musical, como Haydn, Mozart e Beethoven, cujas obras transcendem as fronteiras geográficas, temporais e culturais e se constituem como um dos maiores patrimônios imateriais da humanidade de todos os tempos.

Isso ocorre porque as obras desses grandes mestres da música universal são todas estruturadas a partir de princípios fundamentais como equilíbrio, harmonia, simetria, clareza e perfeição formal; princípios que, segundo a visão socrático-platônica, desenvolvem as boas virtudes na juventude, instituem o discernimento e orientam toda a vida psíquica e social para a prática do bem. Ao tomar contato com este repertório, o jovem apreende, sem esforço e sem necessidade de elaboração racional prévia, todos os valores que moldaram a civilização ocidental. Não existe instrumento civilizatório mais poderoso para educar a juventude do que a música clássica universal.

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Em julho, participei do II Festival de Música Clássica de Paraguaçu Paulista, em São Paulo. Estive à frente de uma orquestra e coro com mais de 60 músicos, composta em sua imensa maioria por jovens entre 12 e 18 anos. Executamos repertório que incluiu obras de Palestrina, Bach, Mozart, Haydn, Beethoven, Tchaikovsky, Mascagni e Villa-Lobos, grandes mestres da forma musical e também da expressão de ideias bem estruturadas através da música. Tenho certeza de que este deveria ser o dia a dia em todas as cidades do Brasil, o que nos transformaria na verdadeira “Atenas dos trópicos”.

Sócrates e Platão, mais uma vez, tinham razão.

Dante Mantovani é maestro, doutor em Estudos da Linguagem e autor de Ensaios sobre a Música Universal: do Canto Gregoriano a Beethoven.
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