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Nos anos seguintes ao início da Primavera Árabe no norte da África e no Oriente Médio, houve um aumento sem precedentes no interesse em ações nãoviolentas em todo o mundo. Ao perceber que ditaduras longevas tinham sido derrubadas por meio da nãoviolência, muitas pessoas se perguntaram “e por que não nós?”

Os eventos da Primavera Árabe fizeram muitas pessoas ao redor do mundo perceberem seu próprio poder. Esse efeito contagioso, que persiste até hoje, é encorajador. Tendo visto pessoas aparentemente incapazes de se defender levantando-se e conseguindo vitórias importantes, muitos descobriram que não podem mais dizer que são meras vítimas impotentes diante de forças poderosas completamente fora de seu controle.

Os cidadãos precisam estar ainda mais vigilantes para reconhecer seu papel na definição do tipo de sociedade em que vivem

As pessoas se perguntam como uma abordagem que ganhou visibilidade por seu potencial de derrubar ditaduras pode ser usada em temas que lhes interessam. A verdade é que a nãoviolência é tão importante para a proteção e a manutenção da democracia quanto para se opor a ditaduras. Até porque a linha entre democracias e ditaduras está cada vez mais difícil de traçar. As democracias têm restringido liberdades pelo controle dos sistemas de comunicação e políticas que reduzem o espaço da sociedade civil. Enquanto isso, ditaduras estão usando eleições, negociações e casas legislativas para fingir algum respeito pelos direitos humanos e políticos.

Esse cenário de mudança significa que os cidadãos precisam estar ainda mais vigilantes para reconhecer seu papel na definição do tipo de sociedade em que vivem. Se as pessoas não protegerem e defenderem essas liberdades democráticas, por verem a si mesmas como impotentes, elas se tornarão irrelevantes para o futuro de suas sociedades.

Constituições e procedimentos democráticos são, no fim, apenas pedaços de papel. Se aqueles em posições de poder creem poder agir impunemente, não é um pedaço de papel que vai impedi-los. Isso é amplamente sabido em ditaduras, mas pode passar despercebido em democracias.

A nãoviolência não depende de documentos escritos ou promessas de líderes, mas do empoderamento de pessoas e instituições que podem ter um papel decisivo em fazer com que os líderes prestem contas às pessoas que servem.

A técnica da nãoviolência vai de encontro à tendência perigosa de centralizar o poder político nas mãos de uns poucos em detrimento dos direitos humanos, das liberdades civis e das práticas democráticas. Ela funciona pela distribuição de poder pela sociedade de dois modos: primeiro, o uso da nãoviolência cria e fortalece instituições independentes fora do controle do Estado; e, segundo, essas instituições ou grupos podem ser a base de uma atividade organizada que impedirá ameaças futuras aos direitos e liberdades.

As pessoas estão aprendendo que, quando há questões fundamentais em jogo, quando as instituições existentes não cumprem seu papel ou quando seus líderes não estão trabalhando pelos interesses do povo, há uma alternativa que pode ser usada em vez da violência; uma alternativa poderosa e efetiva.

Embora os protestos que vemos na televisão arrebatem nossa imaginação, temos de lembrar que, além de coragem e criatividade, eles também envolvem planejamento cuidadoso e muita sabedoria. Apenas encher as ruas e pedir mudanças não basta. Diante de adversários poderosos e organizados, as pessoas não podem deixar que o resultado de sua mobilização seja uma questão de acaso. Basear-se na intuição é perigoso; é importante ter um plano estratégico, que seja baseado em informação detalhada sobre a sociedade, conhecimento da luta nãoviolenta e de como executá-la corretamente.

A nãoviolência tem uma rica história, com centenas de exemplos de seu uso, estudados por meu colega Gene Sharp para extrair inspiração e lições que podem ser úteis para as pessoas que estão lutando para viver em sociedades mais justas e menos violentas.

Ao mesmo tempo, o recurso à nãoviolência para proteger e manter as instituições democráticas exige criatividade contínua, estudo cuidadoso e inovação que vá além daquilo que pode ser estudado hoje. Seria animador ver os passos que já estão sendo dados nesta direção se ampliarem no Brasil.

Jamila Raqib é diretora-executiva do Albert Einstein Institution, principal centro de pesquisa em revoluções nãoviolentas, fundado pelo quatro vezes indicado ao Nobel da Paz Gene Sharp. Ela será uma das palestrantes da Semana da Democracia, evento que ocorrerá em Curitiba no dia 23 de novembro. Tradução: Marcio Antonio Campos
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