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Historicamente, nossa compreensão sobre desvios éticos tem se ancorado em uma explicação tão simples quanto limitante e equivocada: desvios éticos são resultado da falta de caráter de alguns indivíduos, as “maçãs podres”. Ainda hoje, é comum justificarem-se comportamentos antiéticos em problemas genéticos ou em uma educação falha. Com frequência, ouvimos que ética “se aprende em casa”. E é verdade. Mas também é verdade – e essa é a parte que temos negligenciado – que ética se desaprende na vida profissional e social.

Nos últimos anos, temos assistido a incontáveis escândalos éticos envolvendo empresas, governos, acadêmicos e outros agentes. Desde as práticas que levaram à emblemática quebra da Enron em 2001, passando pelo esquema fraudulento que ocasionou a crise financeira de 2008, a enganação de investidores pela OGX, a manipulação no registro de emissões de gases poluentes por automóveis da Volkswagen, a corrupção endêmica desvendada pela Operação Lava Jato, os inúmeros casos de corrupção, cartel e conflitos de interesse na distribuição de medicamentos e equipamentos médicos, a lavagem de dinheiro de traficantes e outros criminosos pelo banco HSBC, integram essa longa lista.

Nenhum desses esquemas é obra de meia dúzia de indivíduos com problemas genéticos de desvio de caráter ou educação falha. Embora existam líderes com comportamento patológico, sobre muitos dos envolvidos nesses escândalos pode-se até dizer o contrário: nasceram em famílias de alto nível econômico e sociocultural, e frequentaram as melhores escolas disponíveis. E a verdade é que problemas éticos sistêmicos, como os mencionados acima, requerem participação ativa, conivência ou, no mínimo, a omissão de um grande número de pessoas.

Pesquisas mais recentes, tanto no campo da neurociência quanto da psicologia social e das demais ciências comportamentais, descobriram que estamos todos sujeitos à influência de fatores ambientais em nossa tomada de decisão e conduta ética. Pessoas “de bem”, “de bom caráter”, podem envolver-se – e constantemente se envolvem – em práticas ilícitas ou antiéticas.

Ao defender essa tese, não ignoramos de modo algum o fundamental papel do livre arbítrio, a relevância da educação e até mesmo dos fatores genéticos. Entendemos, porém, que é preciso reconhecer a influência do ambiente para adequadamente endereçar os problemas éticos sistêmicos da sociedade, cuja existência não podemos mais refutar.

É comum justificarem-se comportamentos antiéticos em problemas genéticos ou em uma educação falha.

Pessoas normais têm aptidão para compreender que a transgressão de regras de convívio social civilizado pode gerar consequências negativas. E essa compreensão aciona o mecanismo neural inibitório de comportamentos que, embora atendam a necessidades/desejos individuais, podem causar prejuízos à coletividade e, portanto, ensejar consequências negativas ao indivíduo.

Quando o córtex pré-frontal é frágil, no entanto, é provável que o comportamento corrupto venha a emergir. Essa fragilidade pode ocorrer por razões patológicas ligadas à genética, lesões cerebrais, doenças como derrame ou tumores, ou traumas emocionais na infância, por exemplo. Indivíduos com essas patologias apresentam déficit de empatia e um comprometimento crônico na capacidade de julgamento moral. Por isso, dificilmente aprenderão a adequar seu comportamento às regras sociais.

Contudo, o comportamento corrupto pode ocorrer sem que exista qualquer anomalia no córtex pré-frontal, mas por influência de um ambiente social no qual desvios éticos são incentivados, não punidos e moralmente aceitos como algo “normal”. Desse modo, não são apenas as circunstâncias pessoais – condições genéticas, patologias e educação familiar – que determinam o comportamento de um indivíduo. A experiência coletiva dos grupos sociais também exerce influência decisiva no comportamento.

Em 1950, o criminalista Donald Cressey propôs a teoria do “triângulo da fraude”: a maioria dos indivíduos estaria sujeita a cometer fraudes diante de uma combinação suficiente de oportunidade, pressão e racionalização, sendo essa última a capacidade de encontrarmos justificativas internas para um comportamento que sabemos antiético.

É corriqueiro, na vida profissional e social, ainda que em alguns ambientes mais do que outros, nos depararmos com o triângulo da fraude. Ele é formado por circunstâncias externas ou sociais, que são aquelas relacionadas ao ambiente macro em que o indivíduo se insere – o país, a sociedade de forma geral – e circunstâncias organizacionais, ligadas ao microcosmo do indivíduo, que pode ser a empresa, a comunidade, uma determinada igreja ou associação.

A eficácia da punição estatal – sanções criminais, como prisão, ou administrativas, como multas, além de responsabilização civil – tem um papel de destaque nesse contexto. A crença de que certos ilícitos resultarão impunes enfraquece nossa capacidade cortical de autocontrole. Esse é um problema particularmente catastrófico para o Brasil, onde se assiste a um retrocesso no combate à corrupção e à criminalidade em geral. O fim da prisão em segunda instância, que devolveu aos criminosos a prerrogativa de infindáveis recursos que acabam por evitar a execução da pena, é apenas um dentre inúmeros exemplos desse movimento de retrocesso.

A neurociência corrobora o que sempre se soube empiricamente: uma sociedade que opta por adotar um sistema legal e uma orientação jurisdicional leniente com o crime deseduca seus cidadãos, reduzindo sua capacidade neural de censurar impulsos de praticar atos ilícitos ou antiéticos em busca de recompensas individuais. A impunidade está na base do esvaziamento ético da sociedade.

Claudia Pitta é consultora e professora de Ética Organizacional e Governança, fundadora da Evolure Consultoria, mentora e sócia da plataforma digital CompliancePME, diretora do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (Ibrademp) e co-coordenadora de sua Comissão ESG.

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