Lá no longínquo ano de 2010, escrevi um artigo neste espaço cujo título era “A república dos adesistas”. Dizia que “a retórica lulista transformou a prática de se opor – natural e desejável em qualquer regime democrático – em algo indecente, imoral, empreendido por representantes de interesses nebulosos”. Era a véspera da eleição em que, com a bênção de Lula, Dilma Rousseff derrotaria José Serra, tornando-se presidente.
A vida não estava fácil para os tucanos. Enfrentavam nas urnas um governo que terminaria o ano com incríveis 87% de aprovação. O que oferecer como alternativa? Estava ali, talvez, a gênese do fracasso do PSDB como oposição ao petismo: Serra viu-se obrigado a ofertar continuísmo, garantindo que, se eleito, seria mais lulista do que Dilma. Não colou. O fim da história é mais dramático e menos entediante que o de Game of Thrones.
Ao longo de seus dois mandatos, Lula foi hábil e bem-sucedido ao usar a deslegitimação da oposição, o seu “nós contra eles”, menos como uma demarcação de extremos ideológicos (direita x esquerda) e mais como estratégia político-eleitoral adaptável aos ouvidos da audiência. A política e suas entranhas sempre foram a bússola: vendeu medo quando achou oportuno (o fim do Bolsa Família), fiou otimismo quando a plateia assim demandava (a “marolinha” da crise econômica de 2008).
Bolsonaro e suas ideias não devem se submeter ao escrutínio público porque, afinal, trata-se de um homem que cumpre uma missão divina
Aquele que agora luta para manter seu protagonismo na esquerda – mesmo que isso custe a derrota em algumas eleições – fez lá suas acusações à “direita raivosa”, claro. Disse, por exemplo, que “eles” teriam conspirado para que tivesse destino semelhante ao de Jango ou de Getúlio, forçado ao exílio ou ao suicídio. Nas palavras do ex-presidente, ditas em um discurso naquele 2010 consagrador, o que o salvou da vergonha ou da tragédia foi o apoio do povo: “eu tinha um ingrediente a mais. Eu tinha vocês”. Lula tratou de construir uma imagem mítica, reputando a si mesmo como protetor dos pobres contra o descaso dos poderosos, ao mesmo tempo em que abraçava Paulo Maluf e fazia desagravos a José Sarney, aquele que, segundo o ex-presidente, não podia ser tratado como um “homem comum”. As relações com a plutocracia nacional seriam evidenciadas mais tarde.
O mundo político dá umas voltas incríveis. Hoje é ala fanática da direita bolsonarista que pede adesão absoluta e considera qualquer ato de oposição como a manifestação de interesses não republicanos. “Comunista” virou um xingamento cuja elasticidade alcança de Guilherme Boulos ao Movimento Brasil Livre (MBL). O ethos bolsonarista, porém, traz elementos diferentes daqueles que alimentavam o petismo apaixonado.
Para Bolsonaro e seus fiéis, a política não pode ser um meio porque sua missão não é política. O presidente convenceu-se (ou foi convencido) de que está destinado a liderar uma cruzada moralizante, demandada por mais de 57 milhões de pessoas, mas que foi endereçada pelo próprio Deus. Trata-se, portanto, de assegurar a prevalência do Bem sobre o Mal. Logo, "esquerdista" ou "comunista" não são categorias a explicar tendências e ideias políticas, mas sim o balaio onde se enfiam aqueles que se opõem à missão, os hereges, as bruxas ideológicas.
Exagero? O presidente da República compartilha um vídeo em que um pastor do Congo, falando “da parte de Deus”, atesta que “Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil. Deus o escolheu para um novo tempo, para uma nova temporada no Brasil. Não passe o seu tempo criticando. Juntem as forças e sustentem esse homem. Orem por ele, encorajem-no, não façam oposição". Bolsonaro e suas ideias não devem se submeter ao escrutínio público porque, afinal, trata-se de um homem que cumpre uma missão divina. Logo, a oposição só pode ser resultado de forças maléficas. Isso seria mera instrumentalização da fé alheia para fins políticos se o presidente não desse mostras diárias de crer nessa pregação. Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores, já havia dito que o presidente é a “pedra angular” do novo Brasil, expressão usada na Bíblia para se referir à missão restauradora de Jesus. Na boca blasfema de um esquerdista, para se referir a um dos seus, as referências certamente seriam criticadas por religiosos. Silas Malafaia não se ofendeu.
Leia também: As manifestações contra o governo Bolsonaro (artigo de Rodrigo Augusto Prando, publicado em 16 de maio de 2019)
Para lembrar Paul Veyne, Bolsonaro parece verdadeiramente acreditar em seu mito. Por isso, não chega a espantar que alguém que materialmente nada entregou em quase três décadas de atividade parlamentar – além de um conjunto de bravatas que guardam alguma correspondência com valores ditos conservadores – cerque-se de um grupo de seguidores cuja fidelidade é comparável à dos lulistas que decidem passar o Natal às portas de uma carceragem para fazer companhia ao líder.
Bolsonaro está onde está para realizar uma reparação, para se vingar em nome daqueles que supostamente viram seus valores sendo atacados ao longo dos anos em que a esquerda esteve no poder. Seja a nudez universitária, a maconha nos câmpus, o beijo gay nas novelas, as mamadeiras de piroca: há uma expectativa – meio inocente, é verdade, mas que se alimenta de um perigoso ressentimento – de que o presidente colocará “ordem” nisso, como se houvesse forma de fazê-lo sem recorrer à borrachada e à censura; ou talvez porque só seja possível fazer isso por meio desses instrumentos. Gerar empregos? Esse milagre ele já sinalizou que não pode realizar. Elegeu-se um presidente para moralizar o Brasil.
Não vai acontecer (oremos!). Mas isso importa pouco para os eleitores fanatizados. Para estes, a mera censura verbal a esses comportamentos já é motivo de regozijo, pois olham para o presidente com os olhos da fé, entendida segundo aquela acepção genuinamente cristã: o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem.
Elton Frederick é mestre em Ciências Sociais.