Ainda que não aceitemos vender, aprisionar e condenar seres humanos ao trabalho forçado, condenamos milhões ao desemprego ou trabalho humilhante por falta de qualificação
Em solenidade na Academia Brasileira de Letras, Marco Vinicios Vilaça lembrou a frase de Joaquim Nabuco: "Acabar com a escravidão não basta. É preciso acabar com a obra da escravidão". A frase de Nabuco, repetida por Vilaça na ABL, mostra a grandeza do maior de todos os pernambucanos que morreu há exatos cem anos. Ele foi um político que ousou pensar, intelectual que não se omitiu em agir, pensador e ativista com causa, principal artífice da abolição do regime escravocrata no Brasil. Mas, apesar da vitória conquistada, reconhecia que a tarefa libertária não estava conquistada.
A obra da escravidão continua viva sob a forma da exclusão social: pobres, especialmente negros, sem terra, sem emprego, sem casa, sem água, sem esgoto, muitos, ainda, sem comida, sobretudo sem acesso à educação de qualidade.
Se estivesse vivo, Nabuco olharia ao redor e se ressentiria de uma obra incompleta porque nós, seus sucessores, não fizemos o que ele defendia nas campanhas para deputado por Pernambuco: dar terra aos escravos e educação para os filhos deles. Sem isso, 121 anos depois da Abolição, o Brasil continua um país escravocrata.
Ainda que não aceitemos vender, aprisionar e condenar seres humanos ao trabalho forçado, condenamos milhões ao desemprego ou trabalho humilhante por falta de qualificação.
Somos escravocratas ao deixarmos que a escola seja tão diferenciada, conforme a renda da família de uma criança, quanto eram diferenciadas as vidas na Casa Grande ou na Senzala. Até hoje, não fizemos a distribuição do conhecimento: instrumento decisivo para a liberdade. Somos escravocratas porque todos nós, que estudamos, escrevemos, lemos e obtemos empregos graças aos diplomas, beneficiamo-nos da exclusão dos que não estudaram. Como antes, os brasileiros livres se beneficiavam do trabalho dos escravos.
A exclusão da educação substituiu o sequestro na África, o transporte até o Brasil, a prisão e o trabalho forçado. Somos escravocratas que não pagamos para ter escravos: nossa escravidão ficou mais barata e o dinheiro para comprar os escravos pode ser usado em benefício dos novos escravocratas. Como na escravidão, o trabalho braçal fica reservado para os novos escravos: os sem-educação.
Negamo-nos a eliminar a obra da escravidão.
Somos escravocratas porque ainda achamos naturais as novas formas de escravidão. Nossos intelectuais e economistas comemoram a minúscula distribuição de renda, como antes os senhores se vangloriavam da melhoria na alimentação de seus escravos, nos anos de alta no preço do açúcar. Continuamos escravocratas, comemorando gestos parciais. Antes, com a proibição do tráfico, a lei do ventre livre, a alforria dos sexagenários. Agora, com o bolsa família, o voto do analfabeto ou a aposentadoria rural. Medidas generosas, para inglês ver e sem a ousadia da abolição plena.
Somos escravocratas porque, como no século 19, não percebemos a estupidez de não abolirmos a escravidão. Ficamos na mesquinhez dos nossos interesses imediatos negando fazer a revolução educacional que poderia completar a quase-abolição de 1888. Não ousamos romper as amarras que envergonham e impedem nosso salto para uma sociedade civilizada como, por 350 anos, a escravidão nos envergonhava e amarrava nosso avanço.
Cem anos depois da morte do pernambucano Joaquim Nabuco, lembrou bem o pernambucano Vilaça ao dizer que a obra criada pela escravidão continua. Por negar educação de qualidade a todos, continuamos insistindo na permanência da obra maldita, que Nabuco ousou enfrentar.
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Cristovam Buarque é professor da Universidade de Brasília e senador pelo PDT-DF.
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