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O presidente da República, em certa oportunidade, manifestou intenção de eventualmente indicar um ministro “terrivelmente evangélico” ao Supremo Tribunal Federal. Tal como revelada, a externalidade presidencial possibilita oportuna análise jurídica sobre eventual correlação entre opção de fé (esfera individual) e o critério de indicação à suprema corte (interesse público). Em outras palavras, a liberdade de crença religiosa (definida no artigo 5.º, VI, da Constituição) poderia ser um fator determinante para a validação ou invalidação de determinada escolha ao STF?
Pois bem. A Constituição Federal de 1988 foi categórica ao estabelecer expressa separação das questões institucionais do Estado frente aos desideratos da fé. O artigo 19, inciso I, da Lei Maior da República dispôs ser vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Ao analisar tal dispositivo normativo, em abril deste ano, o Supremo traçou norte hermenêutico no sentido de que “a laicidade estatal visa a proteger o Estado da influência sóciopolítica e religiosa das igrejas, de ideologias baseadas em compreensões específicas da realidade, impondo-se rigorosa separação entre a autoridade secular e a religiosa. Exige-se também do Estado atuação neutra e independente quanto a todas as religiões por respeito e observância ao pluralismo da sociedade”.
Em artigo de relevo no Corriere della Sera, a inteligência superior de Claudio Magris bem expôs que “laico é quem sabe aderir a uma ideia sem permanecer seu escravo, empenhar-se politicamente conservando a independência crítica, rir e sorrir do que ama continuando a amá-lo; quem está livre da necessidade de idolatrar e de dessacralizar, quem não engana a si próprio arranjando mil justificações ideológicas para as suas faltas, quem está livre do culto de si próprio”.
Nesse contexto, o imperativo da neutralidade religiosa do Estado impede que vinculações de crença, a qualquer título, interfiram em escolhas políticas institucionalizadas. Especificamente, para os fins da suprema magistratura, a Constituição Federal estabelece que os indicados potenciais devam ser “cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada” (artigo 101). Ou seja, sem altar nem santidade, exige-se o requisito objetivo da idade, somado à sabedoria jurídica e idoneidade moral. E ponto final.
Ora, resta claro que a liberdade de crença – direito individual fundamental do cidadão frente ao Estado – não tem qualquer margem de influência, positiva ou negativa, nos motivos determinantes à escolha da suprema magistratura. De um juiz constitucional não se espera decisões em salmos ou versículos, mas apenas, com firmes pés no chão e fidelidade à lei, que disponha da coragem, independência e altivez para otimizar normativamente a Constituição, por meio de pronunciamentos motivados em sérias e inegociáveis premissas de justiça.
Em lição lapidar, a sabedoria insuperável de Rui, escrevendo sobre o julgamento de Jesus, anotou com crueza penetrante que “o quadro de ruína moral daquele mundo parece condensar-se no espetáculo da sua justiça, degenerada, invadida pela política, joguete da multidão, escrava de César. Por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos dos judeus, três às mãos dos romanos, e em nenhum teve juiz. Aos olhos de seus julgadores refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais que bastem para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados”.
Do Supremo, portanto, não se esperam santos nem espetáculos divinos. A pretensão aqui é absolutamente humana: apenas homens e mulheres firmemente comprometidos com o bem do Brasil, fazendo de suas decisões instrumentos reais de exaltação da justiça aos olhos decentes do cidadão comum. Aliás, sendo humanos, as falhas, embora indesejadas, permearão a vida dos magistrados constitucionais. Daí a importância da colegialidade que, por meio da soma prudente de perspectivas plurais, procura transpor eventuais juízos individuais defectivos em favor de uma maioria sábia, austera e modelar à nação.
Sim, a teoria é bela e a realidade, pobre. Todavia, não será queimando os livros nem jogando as instituições ao fogo que elevaremos a dignidade da República. A boa política requer habilidade, enquanto a democracia exige entendimento. Para mediar os interesses contrapostos, há uma Constituição que possibilita um amplo espaço para a justa composição. Há, sem dúvida, muita confusão no ar, sendo a conflitividade incessante uma clara renúncia aos predicados da boa política. Por assim ser, a atual hipertrofia do Supremo tem causas determinadas, sendo uma ingenuidade injusta pensar que o alto tribunal irá bem desempenhar funções que simplesmente não são suas.
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.