As ideias garantistas têm raízes no Iluminismo, mas só se fortaleceram a partir dos anos 1960, na Itália, com a criação da Magistratura Democrática, montada por juízes e juristas de esquerda. A princípio defendendo a autonomia do Judiciário, o movimento logo encontrou apoio na esquerda parlamentar, por alinhar-se à “emancipação das classes subordinadas” e preconizar uma justiça “antiburguesa”. Em poucas palavras, tinha nítida motivação política.
O garantismo penal ganharia destaque com Luigi Ferrajoli, juiz membro da Magistratura Democrática e depois professor universitário. Ele desenvolveu a teoria em diversas obras publicadas nos anos 70, justamente a década em que o Estado de Direito italiano era atacado pelo terrorismo, em especial as Brigadas Vermelhas, que sequestrariam e assassinariam o ex-primeiro-ministro democrata-cristão Aldo Moro em 1978.
O fato é que, nos chamados anos de “centro-esquerda” (1964-76), durante os quais a dominante Democracia Cristã estabeleceu coalizões de governo com o Partido Socialista (que só conquistaria o governo em 1983), o Partido Republicano e o Partido Socialista Democrático, forças políticas que se proclamavam marxistas (ou até mesmo leninistas) pareciam, cada vez mais, ceder terreno ao maldito “capital”. Isto levou esses grupos à luta extraparlamentar, seguindo o exemplo das Brigadas Vermelhas.
Contrárias à linha reformista do então Partido Comunista Italiano (PCI), as Brigadas pregavam a luta revolucionária e procuravam enfraquecer o Estado por meio da luta armada, posição referendada por outros grupos, como o Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), ao qual pertenceu o assassino Cesare Battisti, abrigado no Brasil pelo governo petista sob a proteção do então ministro da Justiça Tarso Genro. Enfim extraditado, hoje cumpre prisão perpétua na Itália.
A radicalização acabaria conduzindo, por meio de uma combinação de elementos anarquistas e utopistas, à rejeição do próprio trabalho. “A rejeição do trabalho”, escreveria o filósofo Antônio Negri, considerado um dos mentores das Brigadas, nega a própria “sociedade do capital”. Por isso, a “rejeição do trabalho é ao mesmo tempo desestruturação do capital e autovalorização de classe”. O corolário de tal raciocínio desembocaria no elogio da “violência auroral”: só a sabotagem, “esta atividade contínua de franco-atirador", pode libertar o operariado.
Diante dos violentos ataques ao Estado de Direito perpetrados pelos grupos armados, o governo italiano decretou medidas de emergência, restringindo particularmente algumas liberdades em relação aos terroristas presos. É aí que o garantismo penal toma fôlego, graças a juristas e advogados que hoje seriam chamados de “progressistas”. A doutrina formulada por Luigi Ferrajoli serviria de estofo à defesa dos “direitos” dos prisioneiros. Para os magistrados ativistas, a repressão a esses grupos era uma verdadeira “criminalização da luta de classes”.
Não cabe aqui analisar as teses de Ferrajoli, mas vale apontar que – direta ou indiretamente – suas ideias influenciam também as posições de autoridades judiciárias brasileiras hoje instaladas no Supremo Tribunal Federal. Basta lembrar alguns nomes: ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli – e, igualmente, o indicado por Bolsonaro para a vaga de Celso de Mello, Kassio Nunes Marques.
Rumos peculiares tomaram tais ideias no Brasil. Não vivemos sob ataques terroristas, mas sob os da criminalidade organizada, particularmente a associada ao narcoterrorismo internacional. Não se trata de luta político-ideológica que se valha do crime, mas de criminosos que se valem da política para alcançar seus objetivos. É para estes que se inclina o garantismo à brasileira. Como se os bandidos fossem vítimas da sociedade, e não o inverso. Como se, em vez de leis laxativas, tivéssemos leis draconianas em relação à criminalidade.
Não chega a espantar, assim, que um perigoso traficante com ramificações internacionais – e condenado em duas instâncias – seja libertado, de um dia para o outro, por simples decisão monocrática.
De fato, ideias importam – para o bem ou para o mal. Vivo fosse, Rousseau hoje se chamaria Luigi Ferrajoli.
Orlando Tambosi é professor aposentado da UFSC, doutor em Filosofia e jornalista.
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