O governo não está pressionado por protestos de rua, nem coagido pelos aliados na coligação de centro-esquerda. Está atendo às estatísticas, às realidades, ao compromisso de atentar para o futuro. O presidente José "Pepe" Mujica não é um demagogo; ao contrário, sua simplicidade, franqueza, seu desapego às pompas do poder o converteram numa figura respeitada e querida por todos.
Ao incentivar o projeto de legalização, cultivo e distribuição da maconha aprovado nesta quinta pela Câmara dos Deputados, Mujica acrescentou ao seu habitual pragmatismo uma grande dose de audácia e, com esses ingredientes, resolveu enfrentar um extraordinário desafio.
Com apenas 3 milhões de habitantes e uma preocupante taxa de envelhecimento da população, o Uruguai está apostando nos jovens, precisa protegê-los. Mais de uma vez Mujica reconheceu que a luta contra o narcotráfico através da repressão está perdida, o país não tem recursos e o velho idealista não tem ânimo para transformá-lo num Estado policial. O monopólio da máfia é o inimigo interno número um.
A decisão é histórica, foi imediatamente condenada pela ONU, mas Mujica já anunciou que irá defendê-la pessoalmente em setembro ou outubro perante a Assembleia Geral. "A maconha é uma praga, mas o narcotráfico é pior, o maior flagelo da América Latina."
O consumo já era legal no país; o plano agora aprovado pela Câmara e encaminhado ao Senado autoriza o Estado a "assumir o controle e a regulação de atividades de importação, exportação, plantação, cultivo, colheita, produção, aquisição, armazenamento, comercialização e distribuição de cannabis e seus derivados".
Uma agência reguladora, o Instituto Nacional do Cannabis (Inca), criada simultaneamente, deverá controlar todas as etapas da cadeia produtiva. Plantar maconha, independentemente da destinação, será permitido desde que com a autorização prévia do Estado. Para consumo próprio dentro da casa do usuário, o limite será de seis plantas e um estoque máximo de 480 gramas do produto processado. O plano vai além do modelo holandês de simples despenalização porque se estende à venda e ao consumo da erva. Só cidadãos uruguaios, devidamente cadastrados, poderão beneficiar-se.
"Nunca fumei maconha, sou de outra época [tem 78 anos] e não defendo qualquer tipo de dependência", declarou o presidente, "prefiro legalizar o consumo para que não cresça nas sombras e cause mais dano à população".
Embora a tramitação no Senado seja considerada mais favorável, uma recente pesquisa indicou que 63% dos uruguaios são contra o plano. Alguns pontos, porém, poderão ser alterados, como o limite mínimo de 18 anos para o cadastro.
Por décadas considerado a "Suíça sul-americana", no ranking do IDH está na 51.ª posição (nós, na 85.ª), o Uruguai liberou os jogos de azar, facilita a movimentação de capitais e agora avança com essa audaciosa experiência sanitária e social. País-laboratório, pouco menor que o Paraná, sabe explorar suas vantagens. Iludidos pelo gigantismo, abdicamos de experimentar. Junho, ao que parece, não serviu para coisa alguma.
Alberto Dines é jornalista.
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