A Bíblia tem as costas largas. Em 1938, depois da infame Noite dos Cristais na Alemanha – uma sucessão de ataques antissemitas que serviram apenas de aperitivo para o Holocausto –, o Reino Unido decidiu agir: era preciso salvar as crianças da Alemanha e do Leste Europeu, permitindo que elas viajassem para Londres para serem acolhidas por famílias inglesas. Assim foi – e quem assistiu ao documentário Nos Braços de Estranhos não esquece: 10 mil terão chegado a Londres entre 1938 e 1939, na esperança de que os pais viessem a seguir.
Não é preciso contar o resto da história. Mas é preciso contar por que motivo os Estados Unidos não abriram as portas com a mesma generosidade: o Congresso não permitiu. Segundo a filosofia triunfante de 1939, separar os filhos dos pais era um ato contrário à Bíblia e às leis de Deus.
Avancemos para 2018. Informa a Folha de S.Paulo que, só entre meados de abril e fim de maio, cerca de 2 mil crianças foram separadas dos progenitores, imigrantes ilegais, na fronteira sul dos Estados Unidos. Para o procurador-geral do país, Jeff Sessions, o procedimento é inteiramente bíblico. Aplicar a lei do Estado é respeitar a vontade de Deus.
Existem duas formas de olhar para o caso. A primeira é vestir a camiseta da pequena política e debater o assunto sob o chicote da ideologia. Para Trump, a lei foi feita pelos democratas; se os democratas não gostam da lei, devem colaborar com a administração republicana para mudá-la. Para os democratas, o problema não está na lei; está na “política de imigração” de Trump, que usa a separação forçada como uma dissuasão para imigrantes potenciais.
Se a imigração ilegal é um caso sério, encontrar uma forma legal de deter as famílias, sem as desmembrar, seria o gesto mais decente
Não entro no debate – embora seja inevitável acrescentar que a esmagadora maioria dos juristas norte-americanos nega que a lei, ou qualquer decisão judicial, determine a separação de pais e filhos.
O meu ponto é outro: às vezes, é preciso recuar um passo, abandonar a selvageria do debate político, só para não perder um certo “sentido de decência”.
Esse “sentido de decência” não vem nos livros ou nos códigos. Não se aprende em universidades ou, Deus me livre, nas redes sociais.
“Decência” significa apenas termos a capacidade mínima de nos colocarmos no lugar dos outros. Para quê? Para imaginar, através de um exercício de substituição e simpatia, as provações de terceiros (obrigado, Adam Smith).
Esse “sentido de decência” não existiu em 1939 nem existe em 2018. Separar pais e filhos para salvar os filhos era o mal menor em 1939. A atitude correta, lógico, teria sido salvar ambos.
Em 2018, essa separação é o mal maior: se a imigração ilegal é um caso sério, encontrar uma forma legal de deter as famílias, sem as desmembrar, seria o gesto mais decente de acordo com as circunstâncias. Depois, a justiça que fizesse o seu caminho.
Do mesmo autor: Humor de perdição (publicado em 31 de março de 2018)
Opinião da Gazeta: Vergonha americana (editorial de 21 de junho de 2018)
Mas não se pense que essa ausência de decência é exclusiva de Trump. Na Europa, um navio com 629 refugiados, entre os quais mulheres grávidas e crianças, andou a vaguear durante dias pelo Mar Mediterrâneo. A Itália fechou as portas ao navio e a Espanha, in extremis, aceitou o desembarque em Valência.
Longe de mim ignorar o problema do impacto da crise migratória na Europa: não é possível acomodar todo o Oriente Médio no continente e eu sei disso. De igual forma, esperar que a Itália (e a Grécia, já agora) seja o único destino dos refugiados – a Itália recebeu 700 mil desde 2013 – é uma receita para o desastre. Ou, melhor dizendo, para a vitória: da extrema-direita, obviamente.
Mas, uma vez mais, há um “sentido de decência” que é anterior a qualquer discussão política. Quando existem 629 seres humanos à deriva no Mediterrâneo, o primeiro dever é resgatá-los. Saber o que fazer com eles; saber quantos podem ficar na Europa; saber quantos representam uma ameaça para a segurança interna; saber quantos devem ser deportados – tudo isso são questões necessárias depois da água, da comida e do abrigo.
Era um personagem de Oscar Wilde quem dizia: as boas maneiras são anteriores à moral. Adaptando essa máxima à política contemporânea, dominada pelo sectarismo do esgoto virtual, antes de você saber se é de esquerda ou de direita, faça uma pergunta mais básica perante qualquer dilema: o que diria a minha avó a respeito?
Isso, claro, se você conheceu sua avó. E se sua avó era uma mulher com maneiras.
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