Em 2001, durante a IV Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em Doha, no Catar, o Brasil e a Índia uniram-se e conseguiram uma vitória importante para a saúde mundial: a aprovação da Declaração de Doha sobre o Acordo Trips e a saúde pública. O Acordo Trips estabelece as obrigações mínimas dos países membros da OMC quanto à proteção da propriedade intelectual. A declaração estabeleceu que nada no acordo deveria impedir os países membros de tomarem medidas para proteção da saúde pública, e tornou-se uma grande bandeira do então Ministro da Saúde brasileiro, José Serra, visando a relativização patentária na promoção de medicamentos genéricos.
Os tempos de cooperação, contudo, ficaram para trás. Em meio à maior emergência de saúde pública global, a delegação indiana não pode contar com o tradicional apoio dos brasileiros na defesa dos interesses dos países emergentes quanto à saúde na OMC. Em outubro do ano passado, a Índia e a África do Sul apresentaram uma proposta para a suspensão das patentes de vacinas e medicamentos contra a Covid-19. Na ocasião, seguindo a postura atual do Itamaraty, o Brasil alinhou-se aos Estados Unidos para rechaçar a proposta.
A nova postura não cooperativa do Brasil com a Índia na OMC gerou uma resposta geopolítica contundente por parte dos indianos: a não priorização do Brasil na exportação de suas vacinas da AstraZeneca/Oxford contra a Covid-19. Nesta semana, a Índia anunciou que começaria a exportar a vacina para seis países – mas o Brasil, que chegou a ter preparado um avião para buscar o imunizante, não estava na lista.
É razoável pensar que a Índia, parceira do Brasil no Brics, esperasse um comportamento diferente do governo brasileiro nessa demanda, uma vez que, desde os anos 1990, todos os ocupantes do Planalto mantiveram posição alinhada ao país asiático em questões similares. Em 2010, inclusive, os dois países denunciaram a União Europeia perante o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, em uma disputa sobre a apreensão de medicamentos genéricos oriundos da Índia e confiscados na Holanda, quando estavam em trânsito, a caminho do Brasil.
Desde o início da administração de Jair Bolsonaro, contudo, o Brasil alterou radicalmente sua estratégia de inserção internacional, estando sempre e automaticamente alinhado aos Estados Unidos. Oficialmente, o alinhamento visava conquistar o apoio dos Estados Unidos para a inclusão do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o “clube dos países ricos”. No entanto, a postura envolve muito mais elementos ideológicos do que um cálculo de ganhos objetivos.
As instâncias multilaterais – como a OMC – são vistas pelos países em desenvolvimento como foros adequados para uma postura cooperativa pois, unidos, eles podem ter um maior poder de barganha diante das grandes potências. A Teoria dos Jogos – muito usada na Economia e nas Relações Internacionais – ajuda a explicar esta premissa: se os países em desenvolvimento agirem de maneira autointeressada e forem subservientes às vontades das potências visando ganhos pontuais, terão resultados piores no longo prazo do que se agirem em conjunto, buscando benefícios mútuos. A estratégia brasileira, porém, é baseada na subjetividade dos sentimentos e não encontra justificativa racional nem no curto, nem no longo prazo.
Jair Bolsonaro nunca escondeu seu amor por Donald Trump – a escolha da palavra “amor” aqui ficou por conta do próprio presidente brasileiro, que disse “I love you” quando encontrou Trump na Assembleia Geral da ONU em 2019. O chanceler Ernesto Araújo parte de semelhante endeusamento – novamente, a palavra “endeusamento” vem de citação direta do ministro, que em artigo “científico” publicado na revista Cadernos de Política Exterior em 2017, afirmou “Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação – inclusive e talvez principalmente a nação americana (...) somente Trump pode ainda salvar o Ocidente”.
Ocorre que os Estados Unidos acabaram de mudar de presidente, tornando incertas as relações que a potência norte-americana terá com o Brasil nos próximos anos. Objetivamente, a devoção do governo brasileiro à amizade com Trump custou um preço caro, pago em vidas brasileiras. Isto porque, sem a boa vontade da Índia para exportar as doses prontas, o Brasil depende da produção em solo nacional do imunizante pela Fiocruz, que ontem anunciou atraso de um mês na entrega das doses previstas para fevereiro por causa da falta de insumos que precisam ser enviados da China. Mesmo problema enfrentado pela única outra vacina aprovada para uso emergencial pela Anvisa, a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceira com a chinesa Sinovac.
A China é outro país com o qual o Brasil também já teve uma relação muito melhor em governos anteriores. Em verdade, talvez seja justo dizer que o posicionamento do governo brasileiro quanto aos chineses não poderia ser pior, com pronunciamentos racistas e insinuações irresponsáveis de que a China teria causado propositalmente a pandemia, vindas de pessoas ligadas ao governo, sobretudo de Eduardo Bolsonaro – que, além de filho do presidente, comanda a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados – e do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub.
As declarações polêmicas, preconceituosas e mentirosas podem servir para agradar o eleitorado fanático de Bolsonaro, que aparentemente é alimentado justamente pelo absurdo. No entanto, a pressão em torno do governo pelo desastre na gestão da pandemia tem crescido e isto pode ser sentido, objetivamente, também na política externa. Em uma nova reunião realizada no âmbito da OMC na quarta-feira, dia 20, o Brasil recuou. Em vez de opor-se expressamente à iniciativa, ficou em silêncio enquanto Índia e África do Sul novamente tentavam vencer os países desenvolvidos (EUA, União Europeia, Reino Unido, Suíça e Japão) no embate sobre a flexibilização da proteção da propriedade intelectual dos insumos.
Se a diplomacia brasileira conseguirá reverter os estragos de sua postura dos últimos anos, só nos resta esperar (e torcer). Trata-se, literalmente, de questão de vida ou morte. Apesar das boas notícias do início da campanha de vacinação, as dificuldades para conseguir as doses necessárias fazem com que o Brasil – que não se antecipou na negociação com laboratórios, tem agido no improviso na busca por imunizantes e hostilizou parceiros estratégicos – veja ficar cada vez mais distante o cenário de uma vacinação em massa. A doença tem matado cerca de mil brasileiros por dia – o que permite calcular exatamente o preço pago pelo desgoverno de Bolsonaro.
Michele Hastreiter é doutoranda em Direito e professora de Direito Internacional Público e Privado no Unicuritiba.
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