A ideia de que não se deve julgar o estilo de vida alheio virou o novo padrão moral há algum tempo. Ou, em outras palavras, o novo normal. Nesse ambiente de relativismo, ninguém é melhor que ninguém: é simplesmente diferente. Dizer que isso ou aquilo está mais de acordo com a natureza humana seria uma afirmação orgulhosa, proveniente de alguém que está na posse de uma suposta verdade e que, por isso, é um obstáculo à harmonia social assentada cada vez mais na diversidade.
Sem dúvida, aqui há um eco positivo da máxima evangélica "não julgues e não serás julgado". Não conhecemos as circunstâncias do outro e não sabemos sua intenção até que a declare. E, se tivermos que levar em conta que "a medida com que medirdes é a medida com que serás medido", é conveniente dar ao outro o benefício da dúvida e do olhar misericordioso, como, de resto, rogamos a nós mesmos. Portanto, quem corre para fazer julgamentos negativos de outras pessoas é visto como uma pessoa acaciana, uma característica negativa em qualquer caso.
Dentro dessa atmosfera, o clima de opinião na sociedade poderia se tornar cada vez mais aberto e plural. No entanto, ele ficou cada vez mais nervoso e relutante na divergência. A ortodoxia mudou, mas a intolerância com o indivíduo dissidente ainda está muito viva e, muitas vezes, chega a ser impossível, a depender do tema, realizar um debate público, livre e pacífico no mundo em que convivemos.
Além da intolerância com o dissidente, a disposição de julgar o outro anda muito ativa. Contudo, o que mudou foi o leque de questões sobre as quais você pode emitir um juízo de valor: não se pode dizer que um tipo de família é mais funcional que outro ou que o desejo de ter um filho não justifica o recurso a “barriga de aluguel” ou que um filho adotivo é melhor educado numa família com pai e mãe ou que crianças podem ser seriamente afetadas vendo adultos nus numa peça teatral.
Qualquer afirmação nesse sentido importaria em excluir o outro, que se sentiria ofendido além da conta. Hoje, ninguém jogaria a primeira pedra contra a mulher adúltera, o que, aliás, é um sinal de civilização, mas também pelo fato de que, pelos costumes reinantes, isso também não nos escandaliza. Afinal, a dita cuja estava apenas começando "um novo relacionamento".
Entretanto, há muitas pessoas dispostas a lançar a primeira pedra contra alguém que foi simplesmente acusado em temas que a sociedade atual considera intoleráveis, como sonegação de impostos, sexismo, poluição ambiental e safáris de animais em extinção.
Em tempos de “#MeToo”, uma queixa pública e ainda sequer comprovada pode ser uma pedra mortal na reputação de um indivíduo. Nesses casos, chega a ser exótico perceber que existe uma verdadeira competição para se lançar a primeira pedra. A queixa é apresentada com um rótulo de transparência e de tolerância zero à injustiça e, não raro, a imprensa ainda dá uma força ao publicar algo pouco investigado, ainda sumário ou precário em evidências por meio de manchetes contundentes e sensacionalistas. Para não ficar muito chato, ainda solicita ao mesmo indivíduo uma nota pública, que, inexoravelmente, produzirá o mesmo efeito que uma nota de rodapé faz numa página de livro.
À luz dessa ortodoxia hoje predominante, a ideia de não julgar o outro é curiosamente seletiva. Uma mulher que defenda o aborto livre e irrestrito não pode ser criticada, mas uma mulher que tem cinco filhos deve ser censurada como uma parideira ou irresponsável.
Um sujeito que, já desacreditado, solicita a eutanásia, deve ser respeitado, mas o médico do posto de saúde da periferia não pode ver respeitado seu direito à objeção de consciência. Convém abster de julgar um transsexual que queira usar o banheiro feminino, mas a mulher que protesta, porque seu próprio espaço é invadido por alguém que até a última célula de seu corpo é homem, não tem espaço para a crítica. “Quem é você para julgar?” é uma questão que só pode ser levantada pela boca progressista para fazer calar o conservador muito convicto de suas ideias ou um reacionário bem acaciano. É uma via que não permite mão dupla.
Após Maio de 68, o relativismo foi identificado com o projeto de sociedade permissiva e libertária. Mas agora que a sociedade ocidental, ao que parece, insiste em varrer do mapa sua herança judaico-cristã, assistimos à imposição daquilo que Bento XVI denunciou, lá pelos idos do inicio de seu pontificado, como a "ditadura social do relativismo": uma sociedade dura em seus julgamentos contra aqueles que não aceitam a ortodoxia dominante e pouco disposta ao congraçamento. E com a primeira pedra na mão, cheia de soberba farisaica, sempre pronta a rasgar as vestes quando lhe convém.
André Gonçalves Fernandes, Post-Ph.D., é juiz de direito, professor-coordenador de filosofia e metodologia do direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp, professor-visitante da Universidade de Navarra e membro da Academia Campinense de Letras.