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A prisão preventiva do general da reserva Walter Braga Netto representa um ponto de inflexão preocupante para o sistema de justiça brasileiro. Em um Estado Democrático de Direito, a privação de liberdade antes do julgamento deve ser uma medida excepcional, fundamentada em provas robustas e amparada em critérios legais bem definidos. No entanto, a decisão que ordenou sua prisão parece carecer de uma base sólida, escorando-se em argumentos frágeis e subjetivos que trazem implicações sérias para a segurança jurídica e a estabilidade institucional no Brasil.
O fundamento apresentado para a prisão – a suposta tentativa de obstrução de investigações – suscita dúvidas quanto à observância dos requisitos legais para a decretação da medida. O artigo 312 do Código de Processo Penal estabelece que a prisão preventiva deve ser sustentada por elementos concretos que demonstrem risco à ordem pública, à ordem econômica, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal. No caso de Braga Netto, faltam evidências contemporâneas e palpáveis que justifiquem a restrição de sua liberdade.
A prisão preventiva de Braga Netto é mais do que um episódio pontual; é um reflexo de um sistema que parece inclinar-se cada vez mais para a subjetividade. O avanço de decisões baseadas em argumentos frágeis e interpretações vagas compromete o Estado de Direito e coloca o Brasil em uma rota perigosa
O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais que reforçam os direitos fundamentais e as garantias processuais. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), em seu artigo 9º, afirma que “ninguém será submetido à detenção ou prisão arbitrária” e exige que qualquer privação de liberdade seja fundamentada em razões claras e embasadas em provas. Da mesma forma, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) estabelece, no artigo 7º, que medidas restritivas devem observar os princípios de proporcionalidade e necessidade.
Esses dispositivos internacionais destacam a excepcionalidade da prisão preventiva, reforçando que ela deve ser utilizada apenas quando não houver alternativas menos gravosas. Monitoramento eletrônico, fiança ou outras medidas cautelares deveriam ter sido consideradas, especialmente quando inexistem atos concretos que comprovem riscos reais à investigação ou à ordem pública.
Sob o prisma do Direito Americano, o contraste é evidente. Nos Estados Unidos, o princípio do due processo flaw, garantido pela Quinta e Décima Quarta Emendas à Constituição, exige que qualquer medida restritiva à liberdade seja amparada em provas concretas e revisada por mecanismos de controle rigorosos. Além disso, a Oitava Emenda proíbe penas cruéis e incomuns e regula a aplicação de fianças excessivas, assegurando proporcionalidade nas decisões judiciais.
A ausência de evidências claras torna a decisão insustentável, mesmo sob critérios internacionais mais flexíveis. Sem atos contemporâneos e concretos que demonstrem obstrução ou perigo real, a prisão parece mais alinhada a práticas autoritárias do que aos preceitos de um sistema democrático.
A utilização de medidas extremas com base em argumentos genéricos evoca práticas de regimes autocráticos. Durante o absolutismo francês, o uso das lettres de cachet permitia que o monarca ordenasse prisões arbitrárias, muitas vezes motivadas por razões políticas ou interesses pessoais. No caso de Braga Netto, o argumento de proteção à ordem pública, sem especificidades ou provas concretas, lembra esse tipo de abuso de poder.
Embora o Brasil seja uma democracia, decisões como essa revelam um preocupante avanço da subjetividade no Judiciário. Ao afastar-se dos critérios técnicos e entrar no campo das interpretações pessoais, o sistema de justiça coloca em risco sua imparcialidade e credibilidade, contrariando os princípios do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal) e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV).
A prisão preventiva é um mecanismo excepcional, reservado para situações em que outras medidas não são suficientes para garantir a ordem jurídica. O artigo 5º, inciso LXVI, da Constituição, e o próprio Código de Processo Penal reforçam essa excepcionalidade. No entanto, o uso frequente e desproporcional desse recurso sem a devida fundamentação legal cria precedentes perigosos. A decisão parece romper com o princípio da legalidade (artigo 5º, inciso II, da Constituição), ao justificar a prisão com base em suposições e atos que sequer se concretizaram.
De mais a mais, a inversão do ônus da prova nesse tipo de decisão representa uma distorção grave. O princípio da presunção de inocência, garantido pelo artigo 5º da Constituição Federal, determina que cabe ao Estado provar a culpa do réu, e não o contrário. Decretar a prisão com base em conjecturas enfraquece esse pilar fundamental do sistema penal, violando tanto a legislação nacional quanto os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Decisões como a da prisão de Braga Netto não devem ser tratadas como casos isolados, mas como parte de uma tendência mais ampla de flexibilização dos limites do Judiciário. Ao transitar pelo terreno da subjetividade e da politização, o sistema de justiça corre o risco de deslegitimar sua função primordial: a aplicação imparcial das leis. Práticas como a expansão do conceito de "ordem pública" para justificar medidas excepcionais aproximam determinadas decisões de mecanismos autoritários.
Essa erosão dos critérios objetivos compromete não apenas a credibilidade do Judiciário, mas também a posição do Brasil no cenário internacional. Como signatário de pactos globais de proteção aos direitos humanos, o país deve reforçar seus compromissos com as garantias fundamentais, sob pena de consolidar um Judiciário mais alinhado a interesses políticos do que à justiça.
A prisão preventiva de Braga Netto é mais do que um episódio pontual; é um reflexo de um sistema que parece inclinar-se cada vez mais para a subjetividade. O avanço de decisões baseadas em argumentos frágeis e interpretações vagas compromete o Estado de Direito e coloca o Brasil em uma rota perigosa. Para evitar retrocessos, é fundamental que o Judiciário brasileiro reforce os critérios objetivos e respeite as garantias constitucionais, reafirmando seu compromisso com a imparcialidade, a legalidade e a proteção dos direitos fundamentais.
Gregório Rabelo, advogado e empresário, é especializado em Direito Constitucional e Legislativo. Atua como assessor jurídico-legislativo na Câmara dos Deputados.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos