Se propagandas de monopólios estatais, como os Correios e a Petrobras, já eram inaceitáveis para a população, o que dizer agora da propaganda dos ministros políticos do TSE/STF nos meios de comunicação sobre a beleza da urna eletrônica, a nove meses da eleição? Os ministros são, eles próprios, a urna eletrônica que conceberam. E estão fazendo propaganda de si mesmos e do que virá do parto dela em nove meses.
Estão vacinando a população contra algo que possa acontecer na gestação e no parto, ou seja, nas eleições de 2022? Ou é um ato falho narcísico que nos conta outras coisas sobre eles e a urna eletrônica, além do que vemos e ouvimos na propaganda (e quando eles falam)? Há alguma relação com as denúncias feitas nas eleições de 2018? Com o lobby que eles fizeram na Câmara dos Deputados para evitar a impressão do voto?
Sempre soubemos que propagandas de monopólios estatais no passado eram o preço a pagar para que a mídia tradicional tratasse bem o governo da ocasião ou, quando não, por pura corrupção mesmo. Agora, propaganda da urna eletrônica significa o quê, se ela não tem concorrência e não existe a alternativa de auditar os votos, por decisão dos ministros? A nove meses da eleição, o que isso significa? Um tipo de doma racional? Significa explicar que o resultado da eleição futura já é, hoje mesmo, futuramente inquestionável, segundo os ministros políticos do TSE/STF? Isso todos nós já sabemos. Quer ver?
A urna eletrônica brasileira substitui o juiz de primeiro grau e os seus auxiliares, os mesários e os apuradores humanos de eleições. Ela apura cada voto em tempo real e não é possível a ninguém divergir dela durante a votação/apuração, nem ao final. Ela é o próprio juiz da eleição.
Então, o TSE/STF é o juiz da eleição em cada uma das seções eleitorais, pois é quem tem a exclusividade do acesso ao seu interior dela. Os TREs também não têm papel nisso.
Todos os variados conflitos humanos imagináveis ao longo do dia da eleição ficaram reduzidos à harmoniosa unanimidade preestabelecida pelos ministros políticos do TSE/STF e inserida nos códigos das urnas eletrônicas por seus poucos programadores a eles subordinados, os quais têm o acesso exclusivo também ao hardware, às chaves de criptografia, aos códigos-fonte, à inteligência artificial, aos algoritmos e a todas as possibilidades (impensáveis a um leigo) que este conjunto de tecnologias pode produzir nas mãos dos programadores – que, temos de lembrar sempre, são tão humanos quanto os seus chefes, e não são santos. Observamos estes fenômenos no uso corriqueiro dos nossos cookies pessoais pelas Big Techs para nos rastrear e fazer uso de nossos dados, quando então constatamos que elas sabem tudo a nosso respeito o tempo todo. E nós não sabemos nada, nem podemos fazer mais nada.
Pense nisso: o banco de dados do TSE/STF, a big data com todos os resultados eleitorais passados, permite aos ministros políticos e seus programadores do sistema da urna fazer processamentos e simulações inteligentes para saber a tendência da eleição seguinte, seção por seção eleitoral – para todos os cargos, principalmente os majoritários. Se eles acrescentarem a esta equação as informações socioeconômicas atuais da população, pesquisas periódicas honestas para consumo interno e uma inteligência artificial básica, poderão conhecer a todo tempo cada frame real da corrida eleitoral e o seu resultado.
Quando sabemos que a China monitora em tempo real o comportamento de cada um de seus habitantes, inclusive com reconhecimento facial, movimentação física, hábitos, gostos, nível de obediência ao governo, tudo numa espécie de balance score card social individual que proíbe ou permite a cada um fazer alguma coisa, tudo digitalmente através de algoritmos que guiam e ajustam os comportamentos individuais, então sabemos que não há mais limite para o controle social, sobretudo em ambiente de absolutismo político.
A asséptica urna eletrônica brasileira eliminou tudo o que os seres humanos caídos e falhos, tais como um juiz de primeiro grau e seus auxiliares, fariam na operação das eleições e nas apurações do mundo real – como eles se aplicariam no trabalho, demonstrando publicamente o cumprimento ou não da lei, decidindo em tempo real sobre questões suscitadas pelos interessados, transparecendo seus valores pessoais, seus cuidados éticos, morais e até mesmo emocionais ou ideológicos, já que são seres humanos.
Isso tudo deixou de existir localmente. É que a urna eletrônica já traz estas “humanidades” de Brasília na sua programação. Seus defeitos ou virtudes são os defeitos ou virtudes dos humanos ministros políticos do TSE/STF e seus humanos programadores dos sistemas nela inseridos às vésperas da eleição.
Faz tempo que a urna eletrônica deixou de ser aquela simples “máquina de somar”, como ingenuamente ainda pensam alguns, mas hoje é uma poderosa ferramenta do sistema eleitoral brasileiro, operado pelos ministros políticos do TSE/STF. É um totem dogmático imposto à população pelo Poder Judiciário político brasileiro. Também é utilizado por alguns outros países, como Butão, Bangladesh e Venezuela.
Será que estes ministros políticos saberiam que os mais seguros sistemas de hardware e software do mundo são os financeiros, dos bancos? Que as transações de cartões de crédito off-line antes das máquinas eletrônicas (P.O.S.) traziam um número de fraudes que, ao se transformarem em transações financeiras eletrônicas, passaram a ter um crescente histórico no mundo todo (4 milhões de fraudes só no Brasil em 2021)? Que o crime eletrônico, a fraude eletrônica segue as evoluções tecnológicas a par e passo no mundo todo? Que tecnicamente é irrelevante para um criminoso eficiente que “qualquer coisa” eletrônica programada por ele opere off-line em determinado período? Que quando há seres humanos configurando um sistema eletrônico financeiro ou eleitoral, e sempre há seres humanos fazendo isso, então aquele sistema eletrônico não é confiável se não tiver um alto grau de conformidade no compartilhamento seguro e redundante das informações segregadas, registros e chaves, alta segurança dos locais de armazenamento, e tudo auditável por vários níveis de acesso? Que a Alemanha disse não aceitar o sistema eleitoral eletrônico porque nele só alguém com formação técnica é capaz de fazer a “apuração” do que a máquina fez, mas lá e em qualquer país democrático, com Estado de Direito funcional, uma apuração só é confiável quando é pública e transparente, podendo ser feita por qualquer do povo?
Abro um parêntesis para mostrar um pouco do Poder Judiciário brasileiro, encarregado das eleições, e aqui comparado com outros países. O World Justice Project é uma instituição mundial que mede a qualidade e a efetividade do Poder Judiciário em 139 países. No relatório do ano de 2021 o Brasil ocupa vergonhosas posições, atrás de países como Gana, Jordânia, Mongólia, Kosovo, Tunísia, Cazaquistão, África do Sul, Emirados Árabes, Senegal, Indonésia, Uruguai, Chile, Costa Rica, Argentina, Panamá e Jamaica, dentre outros mais bem colocados – europeus e americanos. Nenhum deles aceita usar a urna eletrônica brasileira. Fecho parêntesis.
Os ministros políticos do TSE/STF, chefes desta vergonhosa posição do nosso Judiciário em comparação com os Judiciários de outros países, estão debochando do Brasil ao fazer publicidade de uma urna eletrônica que conceberam, ou seja, publicidade deles mesmos. Propaganda segundo a qual la garantia do futuro resultado eleitoral soy yo – ou seja, são eles.
Se esta propaganda é uma vacina na população para controle da sua opinião, é a confirmação de que os senhores ministros realmente estão manipulando a população, assim como fizeram no Congresso. Se for ato falho, vaidade – aquele pecado favorito dos narcisos juvenis –, os senhores ministros estão brincando com o seu poder, pois nunca se viu um Poder Judiciário fazer propaganda.
A propaganda de uma urna eleitoral eletrônica patrocinada por um Poder Judiciário politizado só pode acontecer numa democracia muito frágil, num país tomado por tiranos e Peter Pans, que é como envelhecem os sequestrados pela bolha ideológica dos 50 tons de vermelho.
Juarez Dietrich é advogado, Master of Laws (LL.M), pós-graduado em Processo Civil, ex-membro do banco de conselheiros do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa e do European Corporate Governance Institute, ex-diretor financeiro da OAB Paraná e especialista do Instituto Millenium.
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