Bolsonaro, em um templo religioso da Assembleia de Deus no Brasil, no Pará, garantiu, em 18 de junho deste ano, que a vaga no STF que se abriria com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello em julho seria preenchida por um indivíduo “terrivelmente evangélico”. Garantiu e cumpriu a promessa, com a indicação do pastor André Mendonça.
A Constituição Federal exige apenas ilibada reputação e notório saber jurídico dos indicados para o STF. Mas esta demanda constitucional é, de longo tempo, ignorada em favor de interesses nada republicanos do presidente de plantão. E não estou falando de Bolsonaro apenas. Incluo aqui, também, José Sarney, Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer.
Bolsonaro, no caso da “nulidade jurídica” (obrigado, Caio Coppolla) Kassio Nunes Marques, ignorou flagrantemente essas duas exigências constitucionais. Ele agora ignora essas exigências mais uma vez, ao apontar como relevante o fato de o indicado ser um evangélico, “atributo” que a Constituição não prescreve. E não poderia prescrever mesmo, já que a Constituição é laica, isto é, não privilegia qualquer fé religiosa ou ideologia política, para bem proteger todas as fés e ideologias, desde que estas últimas não sejam totalitárias, como o comunismo ou o fascismo.
Mas Bolsonaro, um primário intelectual que é, mal sabe o que é uma Constituição, muito menos o que seja um Estado Democrático de Direito. Teremos no STF, provavelmente, não apenas um evangélico, mas um criacionista e, quem sabe (não dá para descartar a hipótese), um terraplanista. Como diria J.R. Guzzo, Bolsonaro está conseguindo uma coisa até então impensada: tornar o STF pior ainda.
Recorde-se que a Instituição Toledo de Ensino (ITE), onde André Mendonça fez a graduação em Direito, tirou nota 2 na última avaliação quadrienal da Capes, um órgão do MEC – avaliação dos cursos de pós-graduação em Direito da ITE, fique claro. Nota 2 significa descredenciamento, mas a ITE recorreu ao Conselho Superior da Capes – um órgão político, diga-se logo – e teve a nota aumentada para 4. Embora reverta o descredenciamento, é ainda uma nota pífia, nada recomendável a um curso de pós-graduação. Em abril de 2021, Jair Bolsonaro nomeou Claudia Mansani Queda de Toledo presidente da Capes. Ela era, então, reitora do Centro Universitário de Bauru, mantido pela ITE e instituição na qual André Mendonça se graduou. O curso de graduação de André Mendonça teve a seguinte avaliação no ranking da Folha de S.Paulo (RUF 2019): Posição no país: 181.º; Avaliação do Mercado: 0o; Qualidade de ensino: 114.º. Esta é a instituição em que André Mendonça se formou. Não é mesmo lá grande coisa.
A CF exige apenas ilibada reputação e notório saber jurídico dos indicados. Mas esta demanda constitucional é, de longo tempo, ignorada em favor de interesses nada republicanos do presidente de plantão.
Notícia da CNN diz que André Mendonça tem doutorado em Estado de Direito e Governança Global pela Universidade de Salamanca, na Espanha. Entrei no site desta universidade e não encontrei o nome de André Luiz de Almeida Mendonça. Mas não estou afirmando que a informação é errônea. O que afirmo, e com a autoridade de ex-coordenador de Área de Pós-Graduação da Capes, é que não dou a menor importância a graus obtidos a distância, com a obrigação de permanecer naquele país apenas oito semanas. Sem entrar, por falta de espaço, na constituição daqueles programas, considero-os linhas de clivagens na formação intelectual de qualquer pessoa. Visam mais a “enganação” do que a formação. Mas é grande e crescente o número de advogados procurando tais cursos. Devem ser um ótimo negócio, afinal.
O texto acima eu o escreveria sem pestanejar e o consideraria completo e acabado, não fosse a chantagem nada republicana do comerciário Davi Alcolumbre, ex-presidente do Senado e, agora, presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) daquela casa legislativa.
Alcolumbre é alvo de três ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e de dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo supostas fraudes na sua campanha de 2014 para o Senado. Ele, como a maioria do Senado, quer evitar André Mendonça não pelas razões que apontei acima (currículo acadêmico deficiente e fundamentalismo religioso), mas porque – e isto é apontado publicamente por alguns senadores, sem corarem e na maior cara de pau! – o indicado é homem probo e já deu provas de que, se surgir a oportunidade, age contra corruptos.
Alcolumbre, em ato explícito de chantagem política, evita convocar a sabatina de André Mendonça na CCJ, sem apresentar – embora já questionado abertamente na própria CCJ – um único argumento republicano (que não tem!) para a descomunal demora. Alcolumbre tem a prerrogativa de convocar a oitiva de André Mendonça, mas ele confunde prerrogativa com licença para chantagem, ao descumprir seu dever de ofício. Quanta diferença quando Alcolumbre tratou da recondução de Augusto Aras para a PGR: o processo chegou à CCJ em 19 de agosto, e já no dia 24 Alcolumbre o levou ao plenário da comissão, onde foi feita a sabatina e Aras foi aprovado. No mesmo dia 24, Aras foi aprovado no plenário do Senado! A diferença de tratamento para com a indicação de André Mendonça só merece um adjetivo: indecente. Chantagem explícita e indecente.
Aras tem muita popularidade no Congresso – e com Alcolumbre, em particular – porque obstruiu as delações premiadas, o mais eficaz instrumento de combate à corrupção criado pelas democracias ocidentais, e enterrou a Lava Jato. Nestas questões – blindagem de políticos corruptos – nossos senadores são absolutamente gratos e sabem retribuir o favor quando a oportunidade chega. Por ter barrado as delações premiadas e enterrado a Lava Jato, Aras é o candidato preferencial de Alcolumbre ao STF. É por isso que Alcolumbre faz chantagem. Ele espera que Mendonça ou Bolsonaro desistam da indicação ao STF. Assim ficaria aberta a porta para o coveiro da Lava Jato e das delações premiadas ganhar – pelas mãos de Alcolumbre – a tão sonhada sinecura no STF. E, uma vez no STF, Aras certamente não se esquecerá do imenso favor de Alcolumbre.
Isto é o Brasil político de hoje, um país já classificado pelo prestigiado e centenário jornal britânico The Guardian como uma “Banana’s Republic”. Alcolumbre é certamente um dos mais destacados construtores desta triste República Bananeira.
José J. de Espíndola é engenheiro mecânico, mestre em Ciências em Engenharia, Ph.D. pela Universidade de Southampton (Inglaterra), doutor honoris causa pela UFPR e professor titular aposentado da UFSC.
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