| Foto: Henry Milléo/Arquivo Gazeta do Povo

A trágica morte da vereadora Marielle Franco, do PSol do Rio de Janeiro, além de chocar o mundo pela violência e audácia da ação dos assassinos, aguçou ainda mais a já acirrada e tensa disputa pseudoideológica que tomou conta da política brasileira nos últimos anos, e que agora ganha contorno de páginas policiais.

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Entre milhares de fake news utilizadas por grupos de diferentes correntes políticas, sociais e ideológicas, cada qual tentando utilizar o lamentável episódio para denegrir a imagem do suposto grupo adversário, chamou atenção o retorno da velha retórica: afinal de contas, quem luta pelo respeito aos direitos humanos defende bandido e é contra a polícia?

Em 1945, encerrada a Segunda Guerra Mundial, e ainda sob forte influência de seus horrores, surge a Organização das Nações Unidas (ONU), criada com o intuito de “preservar as gerações futuras do flagelo da guerra; proclamar a fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e valor da pessoa humana, na igualdade de direitos entre homens e mulheres, assim como das nações, grande e pequenas; em promover o progresso social e instaurar melhores condições de vida numa maior liberdade”, segundo a Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945.

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Três anos depois, no dia 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que traz em seu preâmbulo: “Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, (...) a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações” – surgia aí, com caráter de universalidade, o principal documento histórico que até hoje rege internacionalmente a luta pela promoção e respeito ao que convencionou chamar de “Direitos Humanos”.

Violações a direitos humanos nunca foram práticas de um lado específico

Ao longo das décadas, muito se evoluiu na discussão internacional dos direitos humanos, sobretudo aqui na América Latina, com o Pacto de San José da Costa Rica, subscrito em 1969 e que criou o chamado Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O ramo de atuação dos Direitos Humanos ganhou múltiplas faces e bandeiras que até hoje permeiam pelos campos dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, difusos e coletivos.

No Brasil, a discussão sobre direitos humanos sempre esteve intrinsecamente relacionada ao combate à violência policial, resquício talvez do período ditatorial de exceção que durou de 1964 até 1984. Todavia, infelizmente, as violações a direitos humanos nunca foram práticas de um lado específico, assim como sua luta nunca esteve adstrita a um grupo específico de indivíduos. Práticas como tortura, sequestro e assassinatos foram utilizadas tanto pelo regime militar, como meio para se manter no poder, quanto pelos grupos de oposição ao regime que buscavam sua derrubada. Nos dias de hoje, se a violência policial e a utilização da força de maneira desproporcional e autoritária pelas autoridades estatais continuam sendo uma preocupação que demanda atenção, os números de policiais mortos em serviço ou em razão da função, muitas vezes mediante tortura e outras crueldades, são dados que não merecem menos cuidado nesse contexto.

No meio do fogo cruzado de falsas informações chamou atenção o depoimento de Rose de Oliveira, mãe do policial civil Eduardo Oliveira, morto em 2012 no Rio de Janeiro, relatando a ajuda que recebera de Marielle Franco naquele momento de dor. No mesmo sentido, pareceu ir na contramão de todas as especulações a homenagem prestada a Marielle pelo coronel e ex-chefe do Estado Maior da Policia Militar do Rio de Janeiro, Robson Rodrigues, para quem Marielle “defendia muito mais nossos policiais do que nós fomos capazes de compreendê-lo e de fazê-lo”.

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Leia também: Entre traficantes e militantes: a guerra de duas frentes no Rio (artigo de Luiz Guilherme de Medeiros, publicado em 18 de março de 2018)

Nossas convicções: A dignidade da pessoa humana

Embora ambas as notícias tenham chamado atenção e parecido contraditórias para um grande público, distante em sua maioria da luta diária pelo respeito aos direitos humanos e que se alimenta, muitas vezes, das falsas notícias e preconceitos espalhados na internet, não causaram estranheza a quem minimamente acompanha a pauta dos direitos humanos. Pouca gente sabe, mas a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, presidida por um parlamentar do PSol e onde Marielle trabalhou por mais de dez anos, presta serviços de atendimento psicossocial a familiares de policiais mortos em decorrência da violência urbana na capital fluminense – atendimento que nem a Polícia Civil e a Polícia Militar oferecem a seus quadros e dependentes.

A luta pelo respeito e tutela dos direitos humanos nunca foi e nunca será contra a polícia ou contra os policiais, que são cada vez mais vítimas da violência urbana e do covarde abandono estatal, que mata tal qual as ações dos bandidos, sendo, portanto, os policiais, pelo contrário, destinatários necessariamente cada vez mais comuns da tutela humanitária.

Toda tentativa de se ligar a execução da vereadora a um determinado grupo específico de agentes é leviana e precipitada até que haja respostas definitivas por parte das autoridades que investigam o caso. Toda tentativa de se querer contrapor bandeiras dos direitos humanos à polícia, ou de politizar ideologicamente ou partidariamente essa luta histórica é um reflexo da falta de conhecimento fomentada por aqueles que querem angariar dividendos políticos com discurso fácil, quase sempre impregnado de ódio, custe o que custar.

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A luta pelo respeito à tutela dos direitos humanos não tem cor, não tem partido, nem ideologia, e não se destina de forma individual a nenhum grupo de indivíduos, mas sim a todo ser humano que tem sua dignidade humana violada, e essa luta continuará ainda com mais força, com Marielle Franco e Anderson Gomes cada vez mais presentes.

Pedro Filipe C. C. de Andrade é delegado de polícia, professor da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), diretor-secretário da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná, graduado em Direito e pós-graduando em Gestão da Segurança Pública e em Direito Constitucional.