Em anos anteriores os temas propostos para a prova de redação do Enem deram alguma margem à expressão de pontos de vista divergentes, ainda que defensáveis. Quando as migrações foram o tema, muitos candidatos as consideraram positivas, e outros defenderam que a entrada de estrangeiros poderia afetar a oferta de empregos no país. Em 2014, o assunto foi a publicidade dirigida ao público infantil, e mais uma vez as opiniões se dividiram: a maioria dos candidatos se manifestou contra, argumentando que crianças ainda não têm discernimento para “filtrar” os comerciais; houve os que julgaram que a publicidade não deveria ser inibida por estimular a economia e a geração de empregos.
Neste ano, o mote foi de raro senso de oportunidade: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”; tema que, talvez pela primeira vez, não permite dissensão. Embora as provas do Enem possam padecer, em algumas questões, de certo ranço ideológico, a violência contra qualquer ser humano, animal ou natureza não é questão de ideologia; é contrária à humanidade, aos direitos humanos, à civilização, aos direitos fundamentais. Defendê-la inclusive contraria o que o próprio edital do Enem 2015 estabelece: “será atribuída nota 0 (zero) à redação: {...] que desrespeite os direitos humanos”.
Violência contra a mulher é contra a mulher, não contra a feminista, a direitista, a esquerdista, a ciclista
Nas redes sociais já circulam comentários críticos ao tema. Muitos manifestam desagrado com o que dizem ser uma forma de tornar a mulher uma “vítima privilegiada” da violência, não parecendo perceber que, se homens e mulheres são suscetíveis de sofrê-la, e igualmente dignos da proteção da lei, as mulheres ainda têm contra si, além de menor força física, a dependência financeira (que é a realidade de muitas) e o pacto informal de silêncio das instituições e da sociedade quando o assunto é violência doméstica ou feminicídio, pacto este consubstanciado no adágio “em briga de marido e mulher ninguém põe a colher”.
Pesquisas comprovam que a maior parte das agressões ocorre dentro do lar, e é cometida por esposos, companheiros ou namorados, ou seja, pessoas da confiança das agredidas. A Lei Maria da Penha é dita redundante por tipificar delitos que já são contemplados no próprio Código Penal, mas é necessária quando abre a possibilidade de punição mais rápida a criminosos que provavelmente seriam inocentados a priori, pelo silêncio daquelas que agridem, intimidadas pela possível continuidade do convívio com seu atacante.
Há os manifestantes que apenas querem gerar polêmica, atrair atenção, “chocar a burguesia”. Mas os que preocupam de fato são os que acreditam realmente que a proposta de redação seja uma tentativa de “impingir a teoria de gênero goela abaixo”, como foi declarado por um deputado; ou que expõe desejos e visões medievais de convívio.
Esta redação, de todo modo, parece ter originado um enorme debate sobre questões importantes e necessárias, direitos, violência, direitos da mulher. Uma boa redação constitui-se basicamente no desenvolvimento harmônico e coerente de ideias, de um tema. Isso exige primeiramente reflexão sobre o que se vai escrever, e é positivo que milhões de jovens tenham refletido acerca deste ponto; talvez pela primeira vez, mas certamente não a última. O tom de alguns comentários ouvidos após a prova era de surpresa, como se uma realidade presente em muitos lares, bares e locais de trabalho nunca tivesse existido, fosse uma pequena desavença doméstica sobre a qual não seria educado falar. Ou, ainda, apenas uma bandeira de movimentos de gênero ou políticos.
Violência contra a mulher é contra a mulher, não contra a feminista, a direitista, a esquerdista, a ciclista... Restringir a questão ao interesse único de grupos de qualquer natureza é tática que remonta à antiga Roma, dividir para reinar (divide et impera); tornando um assunto de interesse geral em algo pertencente só a alguns e, portanto, mais fácil de contestar.