Em 1936, Albert Jay Nock publicou um ensaio intitulado A Missão de Isaías, no qual há uma passagem que lembra a reforma da Previdência. Durante o reinado do rei Uzias, século 7 a.C., Deus teria instruído Isaías para que fizesse uma profecia a seu povo, nos seguintes termos: “Diga a eles o que está errado e por quê. E o que lhes acontecerá se não houver uma mudança profunda em sua maneira de agir e de pensar. Fale francamente. Deixe claro que esta é a última chance. Fale firme e insista até que eles compreendam”.
Isaías ficou apreensivo quando o Senhor acrescentou: “Devo dizer-lhe que isto de nada adiantará. As elites e os intelectuais desprezarão suas advertências; as massas não lhe darão ouvidos e, provavelmente, você terá sorte se conseguir sair vivo disso”. Assustado, Isaías perguntou por que deveria dar-se ao trabalho de fazer tal profecia, se ninguém lhe daria importância. O senhor respondeu:
“Entenda bem: existem sempre os Remanescentes que você nem conhece e a respeito de quem você nada sabe. Eles são humildes, desorganizados e aparentemente desinteressados. Precisam ser encorajados, porque quando tudo der errado serão eles que retornarão e construirão uma nova sociedade e, até que isso ocorra, sua pregação servirá para lhes manter vivo o interesse e a esperança. Sua tarefa é cuidar desses Remanescentes. Agora vá e dê cabo de sua missão”.
A Previdência Social brasileira foi estrutura a partir dos anos 1940, quando a expectativa média de vida ao nascer era de 45 anos e apenas 1% dos trabalhadores tinham registro em carteira de trabalho, que havia sido criada em 1932, por Getúlio Vargas. O mercado de trabalho e nos anos 1960 havia oito trabalhadores contribuindo com o INSS para cada aposentado. Hoje, a relação é de 1,8 trabalhadores ativos para cada aposentado, e a expectativa média de vida já passa dos 75 anos. Da forma como está, a Previdência dos empregados privados faliu estruturalmente.
O país criou um segundo regime previdenciário, diferente, para os funcionários do setor estatal, nele incorporou os defeitos do sistema previdenciário privado e adicionou outros defeitos, como aposentadorias para servidores com idade precoce e que irão viver 30 ou mais anos recebendo salário integral, pensões por morte como não há em quase nenhum país adiantado do mundo e outros benefícios que abocanham expressiva parcela dos tributos que deveriam ir para a infraestrutura e para os serviços públicos.
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Um amigo funcionário público aposentou-se recentemente, aos 54 anos, recebendo o teto de R$ 33,7 mil. Eu disse a ele: “A culpa não é sua, claro, afinal você fez concurso e a legislação sobre aposentadoria do servidor público aí está”. Ele pode viver mais 30 anos e receberá R$ 33,7 mil de salário pelo resto da vida, e esse foi o teto do salário dele nos últimos cinco anos, pois ao ingressar na carreira o salário era bem menor. Se ele fosse um trabalhador privado, o valor máximo que receberia do INSS é de R$ 5,8 mil, que é o teto de 2019. Esse amigo passou seus anos no governo controlando documentos tributários, cuja tarefa, sinceramente, um bom técnico em contabilidade com salário de R$ 8,5 mil faria com qualidade.
Estou citando um exemplo que não é a realidade da grande massa dos servidores públicos. Mas também não é pequena a massa dos servidores que têm salários muito mais altos que os da iniciativa privada e aposentadorias muitas vezes maior. O teto do INSS em 2019 é de R$ 5,8 mil, e esse é o valor máximo de um aposentado do setor privado, mesmo que ele ganhe R$ 30 mil de salário na ativa, tenha contribuído com 11% ao INSS sobre R$ 5,8 mil e o patrão contribuído com 20% sobre os R$ 30 mil. Sim, porque o teto do INSS, para fins de contribuição, vale para o trabalhador, mas o patrão paga 20% sobre o total do salário do empregado.
A junção dos dois sistemas previdenciários – dos trabalhadores privados e do funcionalismo estatal – tornou-se um desastre em pleno fim da segunda década do século 21, tanto por seus defeitos quanto pelo fato de ter mudado a pirâmide etária, pelas pessoas estarem vivendo muito mais e porque ambas as previdências são compulsoriamente geridas pelo setor estatal. Portanto, mesmo correndo o risco atribuído por Deus ao profeta Isaías, é preciso falar às massas que ou o país conserta esse problema agora ou nossos filhos e netos pagarão a conta de nossa omissão.
José Pio Martins é economista e reitor da Universidade Positivo.