O crescente avanço tecnológico das últimas décadas transformou significativamente os paradigmas dos conflitos. Observa-se que supremacia tecnológica gera maior capacidade militar, muitas vezes avassaladora, exigindo de todos os países um questionamento permanente da adequação das suas estruturas de defesa e dos conceitos que as embasam e justificam.
O conceito mais elementar que essa realidade mudou é o de capacidade militar. Modernamente, reconhece-se que esta possui dois componentes igualmente essenciais: capacidade operacional de combate (ou capacidade militar propriamente dita) e capacidade de logística de defesa. Esta última engloba dois lados que devem atuar de forma sinergética.
O lado da oferta, constituído pela Base Industrial de Defesa, cuida da inovação, desenvolvimento, manufatura e apoio logístico a produtos de defesa. Esta base pertence ao setor produtivo e pode ter partes públicas e/ou privadas. O outro lado é o da demanda. Esta é de responsabilidade exclusiva do Estado e cuida da gestão do desenvolvimento e da aquisição desses produtos. São atividades que exigem conhecimentos técnicos para especificação, teste e avaliação e aceitação de produtos complexos, além de competência para elaborar, negociar e gerir contratos.
As atividades relacionadas a operações de combate são substancialmente diversas das necessárias à logística de defesa, em praticamente qualquer aspecto que se deseje considerar: qualificação (formação e experiência), características de carreira (permitir, ou não, alta rotatividade nas funções) e perfil (ethos de combatente versus de profissional de logística de defesa) dos recursos humanos, processos utilizados, ambiente de operação (campos de batalha versus ambientes de negócios) e cultura organizacional das instituições que as desenvolvem. Diferenças tão marcantes exigem que essas duas atividades sejam executadas por instituições diferentes.
A auditoria sistemática da efetividade, eficácia e eficiência das instituições e empresas, visando ao seu aprimoramento e adequação à realidade, em constante mutação, tornou-se um imperativo de sobrevivência das mesmas mundo afora. Não poderia ser diferente nas instituições públicas voltadas para a defesa. Além do citado impacto do avanço tecnológico na capacidade militar, inúmeras são as forças que vêm impondo mudanças institucionais nas estruturas de defesa de todos os países com alguma relevância econômica e/ou militar no cenário internacional: aceleração do desenvolvimento tecnológico com a consequente rápida obsolescência dos sistemas de armas e seus componentes críticos, com impacto na eficácia e na manutenção; aumento contínuo e significativo do custo dos sistemas de armas, particularmente pela necessária incorporação dos avanços tecnológicos (podendo em alguns casos chegar a 10% ao ano em termos reais); restrições orçamentárias crescentes para a defesa em períodos de paz; necessidade de maior profissionalismo para a execução das atividades de logística de defesa, que se encontram entre as mais complexas que existem; e adequação a práticas avançadas de gestão e governança.
A solução encontrada em praticamente todos os países foi a separação das atividades de operações de combate e afins das de logística de defesa. Ou seja, reconheceu-se a necessidade de dois Instrumentos de Defesa distintos e independentes.
Um deles, representado pelas forças armadas, tem a responsabilidade de prover a capacidade operacional de combate de que o país precisa. O outro instrumento cuida das atividades de logística de defesa, destinadas a aparelhar e apoiar o emprego das unidades militares combatentes.
O modelo universalmente adotado atribui a execução das atividades de aquisição de produtos e sistemas, de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e de ciência, tecnologia e inovação (CT&I), específicas para defesa, a um órgão independente das forças armadas, dotado de um corpo profissional de militares e civis com formação e capacitação adequadas e, no caso dos militares, com carreiras totalmente independentes das carreiras dos militares combatentes (ou seja, com ascensão funcional de caráter vertical não dependente de decisões dos comandantes das forças armadas). Alguns exemplos desse tipo de instituições, criadas em vários países com características muito distintas, ilustram essa tendência: a Direction General de L’Armament na França, o ARMSCOR na África do Sul, a Defence Research & Development Organization e o Department for Defence Production na Índia, e a Presidency of Defense Industries na Turquia.
No Brasil, as atividades de logística de defesa estão dispersas em três ministérios: Defesa; Ciência, Tecnologia e Inovação (por meio da Finep) e Economia (por meio do BNDES). Mas, principalmente no Ministério da Defesa, ocorre nova dispersão. Existem vários setores subordinados ao próprio ministro e diversos órgãos subordinados aos comandantes das Forças Armadas. No total, são mais de 15 organizações dirigidas principalmente por militares de alta patente (oficiais generais de quatro estrelas) e algumas por civis, ao passo que, na maioria dos países, existe apenas um único responsável.
Portanto, no Brasil não existem dois Instrumentos de Defesa distintos e independentes com as características mencionadas. As Forças Armadas absorvem a maioria das atividades de logística de defesa e mantêm uma estrutura com muitos órgãos dirigidos por oficiais da mais alta patente.
O resultado é um sistema intrinsecamente menos eficiente, pois tem um custo fixo mais elevado, causado pela desnecessária redundância.
A baixa eficácia também é decorrente da grande quantidade de altas autoridades com ingerência na logística de defesa, porque é praticamente impossível definir e implementar uma política pública nacional para produtos e sistemas de defesa quando existem tantas autoridades de alto escalão que gozam de grande autonomia para tomar decisões.
A propósito, é importante salientar que organizações profissionais voltadas para logística de defesa também são as mais adequadas para formular e implementar políticas públicas, visando ao desenvolvimento, fortalecimento, sustentação e competitividade da Base Industrial de Defesa, realmente estratégica para o país. Não apenas por fornecer os meios necessários à defesa nacional, mas também por contribuir para o desenvolvimento produtivo e tecnológico do país em produtos de alta e média-alta tecnologias. Neste sentido, as atividades de P&D, aquisição e manutenção são os instrumentos mais adequados para esse fim e os profissionais que atuam nesses órgãos são os que já possuem – ou têm melhores condições de desenvolver, em decorrência da experiência que acumulam – as qualificações adequadas para atingir esses objetivos. Não é desprezível também o fato de possibilitar a existência de apenas uma alta autoridade responsável por todas essas atividades, o que facilitaria sobremaneira a tarefa de definir e implementar políticas públicas de abrangência para toda a defesa.
Por todos esses motivos, é necessária e urgente a criação de um órgão, independente das Forças Armadas, subordinado diretamente ao Ministro da Defesa, para cuidar da logística de defesa no Brasil. Essa criação poderia se dar da mesma maneira como foi feito com a Força Aérea Brasileira, 81 nos atrás, com a transferência de órgãos, instalações, materiais e pessoal civil e militar oriundos das três forças armadas.
Eduardo Siqueira Brick é professor titular (aposentado) da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competividade Industrial (UFFDefesa).