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Nesta pandemia da Covid-19, o pagamento do auxílio emergencial a mais de 40 milhões de pessoas, muitas já assistidas por outros programas, enfatizou as dimensões da dívida social do país. Tem-se falado que essa população era invisível, mas não concordo com tal definição. Acredito que o termo mais apropriado para qualificá-la seja “brasileiros negligenciados”.
Antes do isolamento social, víamos esses cidadãos o tempo todo, vendendo o que era possível nas esquinas, nas praias e nas praças públicas; comercializando artesanato rudimentar nas grandes avenidas; trabalhando como camelôs e fugindo do “rapa” nas praças e parques mais movimentados; produzindo e vendendo pipocas, salgadinhos e sanduíches nas portas das escolas; assando e comercializando churrasquinho nas saídas dos estádios de futebol; tocando instrumentos musicais e cantando nas ruas das maiores cidades...
Convivíamos com todas essas pessoas quotidianamente. O novo coronavírus lhes causou o imediato e cruel efeito colateral de extinguir, de modo abrupto, a totalidade de sua renda, obtida por trabalho informal. Embora o Estado possa alegar, ao longo do histórico processo de exclusão vivenciado pelo Brasil em mais de um século, que o resultado financeiro de seu labor era invisível ao fisco e que eles próprios não apareciam em muitos dos cadastros dos distintos organismos públicos, não cabe a justificativa do desconhecimento de sua existência e de sua condição de cidadania. Afinal, são claros e consistentes os dados socioeconômicos produzidos de modo competente pelo IBGE.
Assim, a rigor, a concessão do auxílio emergencial foi um reconhecimento tácito e importante, frise-se, da condição precária de milhões de brasileiros, que eram, sim, conhecidos, mas negligenciados durante décadas. O socorro do Estado não lhes proveu definitivo passaporte de inclusão nos benefícios da economia, mas os identificou pelo CPF e pelo cadastro em instituições bancárias, que a maioria jamais tivera. Mais do que isso, “denunciou” a realidade da sua baixa e intermitente renda. Trata-se de um passo importante, ocorrido numa situação dramática, para que esses mais de 40 milhões de brasileiros não sejam mais esquecidos e possam somar-se ao trabalho formal, o meio mais eficaz e digno para a outorga da cidadania.
É óbvio não haver condição de se manter indefinidamente a ajuda a um contingente tão grande de pessoas. É como se o governo brasileiro estivesse dando um auxílio de R$ 600 ao mês para a totalidade da população da Argentina. Trata-se de algo inviável, em especial se considerarmos que o déficit fiscal já está ultrapassando o equivalente a 14% do nosso PIB. Por isso, o inadiável processo de inclusão socioeconômica desses brasileiros começa pela hercúlea tarefa de colocar as contas públicas em dia. Somente assim poderemos reconquistar a confiança dos investidores, retomar o crescimento econômico em patamares mais elevados, gerando empregos formais em grande escala.
Também são fundamentais para o êxito dessas metas as reformas administrativa e tributária, esta já iniciada. Porém, a primeira é decisiva, inclusive para sabermos qual montante de recursos a sociedade precisará prover ao Estado, para que este cumpra suas funções básicas. Esta pandemia mostrou, também, a importância do setor público, como na atuação do sistema de saúde e dos órgãos de segurança, e no próprio auxílio emergencial que já mencionamos.
Mas precisamos saber quanto custa o Estado que queremos, que, pelos parâmetros das contemporâneas democracias capitalistas, deve cuidar bem da saúde, educação, segurança pública e jurídica, e prioridades sociais, atuando, ainda, como indutor e facilitador do desenvolvimento econômico sustentável. Ou seja, é necessário “orçar” o custo dos três poderes em sua concepção ideal, para que tenhamos, com precisão, o montante de tributos para mantê-los.
A dolorosa crise da Covid-19 mostrou-nos, da maneira mais sofrida, o quanto o Estado afastou-se da sociedade, principalmente dos excluídos, tornando-se pesado, ineficiente e míope ante as prioridades da população, invertendo, ainda, seu papel sociopolítico de servi-la, tornando-se seu mais voraz suserano. Temos a oportunidade de reverter tal situação, realizando as reformas necessárias e jamais nos permitindo outra vez negligenciar um cidadão sequer.
Fernando Valente Pimentel é presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit).