Não é de hoje que a discussão em torno do conceito de dignidade humana é feita especialmente na sua forma prática, que é a garantia dos direitos de cada cidadão. A Constituição Federal garantiu o acesso à saúde como um direito da sociedade e um dever do Estado. Assumindo sua incapacidade em prover esse acesso, o Estado brasileiro abriu a possibilidade de participação da iniciativa privada. Inicia-se a primeira rachadura em um sistema de saúde dito único, mas que tem sua suplementação à parte, via planos de saúde.
Ao longo dos anos está ocorrendo uma migração dos recursos em saúde, do público para o privado, a ponto de termos hoje somente 44% de dinheiro estatal aplicado na assistência à saúde. Ou seja, a maior parte dos recursos é privada, demonstrando a perversidade do modelo em curso. Enquanto no sistema suplementar o universo de pessoas atingidas é de aproximadamente 50 milhões, os demais 145 milhões de brasileiros são atendidos exclusivamente no SUS, com um financiamento muito menor. A atual presidente teve a oportunidade de corrigir esta distorção ao analisar a Emenda Constitucional 29. Mas preferiu manter o subfinanciamento, retirando a parcela mais importante do sustento do SUS os 10% das receitas brutas da União. Atualmente, o maior ônus está na mão dos prefeitos, justamente o lado financeiramente mais fraco da organização do Estado brasileiro. Passamos da simples rachadura inicial para a formação de um abismo.
O modelo e a intenção do governo atual, no poder há mais de uma década, está muito claro: privatizar a saúde pública desonerando seus cofres. Ao fim de sua gestão, o presidente Lula lançou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, numa clara intenção de entregar à iniciativa privada os hospitais federais. A forma maléfica como esses hospitais estão sendo tratados demonstra claramente as intenções do governo; que o diga o Hospital de Clínicas do Paraná, que está minguando até o seu possível fechamento.
Em resposta às manifestações populares, o governo, mantendo sua lógica de não investir qualificadamente em saúde, lançou o programa Mais Médicos. Um belo exemplo de campanha publicitária que foca em uma classe e a responsabiliza pela incompetência governamental. Quem poderia ser contra a presença de mais médicos para atender a população? Esse desvio de foco tenta ocultar o real problema, que é a falta de estruturação na saúde, tão demonstrada pela imprensa. Por outro lado, também erra no tratamento ao permitir que profissionais venham ao país para atender nossa população mais desassistida, sem analisar criteriosamente sua qualificação. Claramente não se importa com a população que, desassistida, terá de se contentar com o que lhe for oferecido. Como se favor fosse. Lembramos que o custeio vem dos altos impostos pagos pela sociedade. Portanto, longe de um favor, é uma obrigação do poder público oferecer serviços de qualidade. E o abismo se alarga.
Por último, como a cereja do bolo, os vetos presidenciais à lei que regulamenta a medicina escancaram, paradoxalmente, a intenção de afastar o médico, de forma progressiva, do atendimento ao povo mais carente, pois nossos gestores, com a calculadora na mão, definem que, para o SUS, outros profissionais de saúde podem assumir a função do médico. O abismo se expande e demonstra claramente que, de um lado, teremos acesso à saúde integral, custeado às expensas de cada cidadão, e de outro um acesso "possível", de acordo com os caprichos do governo.
Urge uma discussão ampla sobre o sistema que queremos e que podemos suportar como nação, evitando que esse abismo se torne intransponível.
Alexandre Gustavo Bley é presidente do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR).