“E do seu lábio vil pendia a baba elástica e bovina da pusilanimidade” (Nélson Rodrigues)
A condenação em segunda instância de Luiz Inácio Lula da Silva saiu, afinal. Pela Lei da Ficha Limpa, o corrupto condenado está impedido de se candidatar à Presidência. E, caso não haja algum casuísmo ou acordo político nas altas cortes, corre o sério risco de ser preso dentro em breve. É um golpe duríssimo no projeto totalitário do assim chamado “socialismo do século 21”, arquitetado no começo da década de 1990 pelo Partido dos Trabalhadores e seus aliados continentais do Foro de São Paulo, e cuja realização mais dramática é a brutal ditadura chavista na Venezuela, modelo ideal de governo para o corrupto e seus asseclas.
Hoje parece claro que o partido dito “do povo” já não conta com apoio popular algum, como prova o número constrangedoramente reduzido de militantes que, na hora mais dramática da biografia de seu timoneiro, teve ânimo de ir às ruas defendê-lo (muitos, vale lembrar, motivados apenas pela oferta de sanduíches de mortadela e refresco instantâneo). Quarenta anos depois de sua fundação, o PT retorna à sua dimensão original.
O que mais chama a atenção é o semblante de superioridade moral dos zelotes lulopetistas
Como tenho insistido, o partido nunca foi, ao contrário do que o nome indica, “dos trabalhadores”. Foi, e continua sendo, o partido dos intelectuais – compreendido o termo já no sentido ampliado que lhe deu o comunista italiano Antonio Gramsci, e que inclui toda sorte de formador de opinião ideologicamente comprometido com a mudança do senso comum em favor do partido, de acadêmicos a jornalistas, de artistas a publicitários, passando por padres de passeata e juristas prafrentex. O PT deve a esses “intelectuais” – muito mais que aos sindicalistas do ABC – sua base social permanente, que fez dele, durante um tempo, o maior partido da Nova República, o único com militância organizada, orientação ideológica, narrativas mitopoéticas e trilha sonora. Quem não lembra da nossa classe artística em peso, comovida, cantando em coro o célebre “Lula lá”, jingle da campanha presidencial de 1989?
Portanto, não é de se estranhar que venham justamente daquela base social as reações mais desesperadas diante do ídolo de gesso que se estilhaça. Uma dessas reações veio em forma de nota infame de um treco chamado Fenaj – a Federação Nacional dos Jornalistas, uma das tantas entidades de classe aparelhadas pela extrema-esquerda brasileira. Pretendendo falar em nome “da democracia e do Estado Democrático de Direito” e, pior ainda, de todos os jornalistas do país, seus signatários nada mais fazem que defender a impunidade para seu guru, o corrupto condenado.
Ao longo dos últimos meses e semanas, cansamos de ter notícias de manifestações semelhantes. Destacaram-se os vários encontros do corrupto condenado com grupos de intelectuais e artistas, dentre os quais muitos atores da Globo, emissora que a retórica lulopetista, em parte por cinismo (da cúpula), em parte por autêntica obtusidade (da baixa militância), acusa de “golpista”. O rol de globais pró-Lula inclui jovens militantes de extrema-esquerda, como as atrizes Camila Pitanga, Maria Casadevall e Monica Martelli, e comunistas vetustos como Sérgio Mamberti, Bete Mendes, Bemvindo Sequeira, Cristina Pereira e Osmar Prado. Este último, aliás, foi flagrado em vídeo, trêmulo de ira ao ouvir na rua uma senhora chamando de ladrão o seu grande líder. Partindo para cima da mulher com dedo e perdigotos em riste, e seguindo fielmente a ordem do comitê central do partido, chamou-a de leviana por “acusar sem provas”, como se, àquela altura, o ex-presidente já não houvesse sido acusado pelo MPF, julgado e condenado em primeira instância, numa sentença impecável do juiz Sergio Moro, ora confirmada pelos desembargadores do TRF4.
Do mesmo autor: Zé Dirceu e a sedução do mal (13 de maio de 2017)
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O que mais chama a atenção nessa reação de pura paixão política é o semblante de superioridade moral dos zelotes lulopetistas. Se o cinismo talvez explique o comportamento do corrupto condenado e de outras lideranças partidárias, não basta para explicar o enigma daquele semblante que leva tanta gente a lançar na lama, de modo irrecuperável, a própria honra e reputação, repetindo em tom solene, e sem atinar com o próprio ridículo, as mais cretinas palavras de ordem. Há algo de patologicamente sincero na alma do militante comum, algo que só podemos compreender na chave do milenarismo político.
Num clássico estudo sobre o tema, o historiador Norman Cohn destaca alguns traços permanentes do conceito milenarista de salvação, sempre concebida como: a) coletiva, não individual; b) terrena, ou realizada neste, e não em outro mundo; c) iminente, na medida em que será súbita e para breve; d) total, na medida em que implica uma transformação irreversível da realidade presente, de modo que o novo estado de coisas não seja visto como simples aperfeiçoamento, mas como a própria perfeição; e) miraculosa, no sentido de realizada mediante auxílio de agentes sobrenaturais.
Os milenaristas da seita lulopetista acreditam piamente numa transformação total e irreversível da nossa ordem social
Com exceção do último, os demais traços sobreviveram no imaginário revolucionário contemporâneo, em especial na escatologia marxista, uma versão secularizada dos milenarismos medievais. Como herdeiros culturais daquela, os milenaristas da seita lulopetista acreditam piamente numa transformação total e irreversível da nossa ordem social, crença manifesta no slogan “Nunca antes na história deste país…”.
Na forma como Norman Cohn descreve a heresia milenarista do “Livre-Espírito” (séculos 13 e 14), por exemplo, é possível divisar as sementes milenaristas da alma lulopetista: “O âmago da heresia do Livre-Espírito residia na atitude do adepto para consigo próprio: ele acreditava que tinha atingido uma perfeição tão absoluta que era incapaz de pecar. Embora as consequências práticas desta crença pudessem variar, uma consequência possível era certamente o antinomianismo ou o repúdio de normas morais. O ‘homem perfeito’ podia chegar sempre à conclusão de que lhe era permitido, e até lhe competia, fazer tudo o que fosse comumente considerado como proibido”.
Eis aí a essência do fenômeno que o autor chama de “milenarismo revolucionário”. Para seus adeptos, a luta política não visa a objetivos limitados e específicos, mas à completa transformação da realidade social, quando não à regeneração da espécie humana. Daí que se vejam como seres apartados da realidade ordinária, superiores às leis e normas que disciplinam as pessoas comuns. “Sou um estranho para a ordem existente das coisas. Não devo misturar-me a elas” – dizia o revolucionário russo Dimitri Pisarev, uma frase que qualquer adepto da seita lulopetista subscreveria.
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