Discutamos o caso Mariana Ferrer – processo judicial que tramita em segredo de Justiça e é o tema mais noticiado da semana – sob três distintos aspectos. Um: a sentença. Dois: a audiência. Três: a mídia.
Primeiro, a sentença. Entendamos. Houve denúncia por estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal), crime que, no caso, se configura pela existência de ato sexual com quem, por alteração psíquica, não pode validamente consentir.
O Ministério Público, ao término da instrução processual, reconheceu a existência de sexo entre Mariana e o réu, bem como reconheceu a vulnerabilidade, mas pleiteou a absolvição “por não haver provas de que o réu tinha consciência sobre o estado de vulnerabilidade de Mariana e, consequentemente, dolo”. Assim, tecnicamente amoldou a situação ao chamado erro de tipo (descrito no artigo 20 do Código Penal) e concluiu que, afastado o dolo, só poderia existir condenação se houvesse na legislação – e obviamente não há – a previsão de “estupro culposo” (ou seja, cometido sem intenção/dolo).
A sentença, por sua vez, também reconheceu o ato sexual, mas absolveu com fundamento um pouco distinto: “não haver prova suficiente de que a vítima estava (efetivamente) vulnerável”. Portanto, e diferentemente do que fora noticiado, o juiz não trouxe aos fundamentos – e tampouco o Ministério Público o fez – o sabidamente inexistente “estupro culposo”.
Se a sentença está correta... a história é outra. Chama a atenção, nesse ponto, o fato de a absolvição ter sido embasada em tese(s) que nem sequer o acusado aventou. O réu não buscou demonstrar 1. desconhecimento/inconsciência sobre a vulnerabilidade da mulher com quem fez sexo, tampouco 2. a efetiva ausência de vulnerabilidade da vítima. O réu, em seus depoimentos – mesmo com perícias comprovando, por meio do DNA, que o sêmen a ele pertence e que houve, na data, o rompimento do hímen da vítima –, simplesmente (e inexplicavelmente) negou ter feito sexo (!). Mas isso é tema para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, não para essas breves linhas.
Agora, a audiência. Sou advogada criminalista. Repudio a criminalização da advocacia criminal. Prezo pela ampla defesa. Mas reconheço que a atuação defensiva – como tudo, no Direito ou fora dele – conta com limites. Legais e éticos. A audiência de Mariana Ferrer (sejam os trechos inicialmente divulgados, seja o conteúdo integral, na sequência tornado público) é retrato de uma atuação que, em nome da (suposta) técnica, transborda para o inaceitável.
Assistimos, em uma audiência sabidamente gravada (e assim ficamos imaginando como seriam as não gravadas...), um advogado que humilha – de forma reiterada – Mariana. Mostrando para as câmeras fotos íntimas (em “posição ginecológica”, nas palavras do defensor), como se isso guardasse alguma relação com o fato em julgamento. “Agradecendo a Deus por não ter uma filha do nível dela.” “Pedindo a Deus que o filho dele não encontre uma mulher como ela.” Assistimos, na mesma cena, a um Ministério Público que se mantém inerte. Omisso. Assistimos a um magistrado que, responsável por presidir a audiência – mantendo a regularidade do ato (artigo 251 do Código de Processo Penal) –, vez por outra tenta interromper os ataques. Mas não o faz de modo satisfatório e suficiente, tanto assim que os ataques prosseguem. Assistimos a uma mulher implorar por respeito. Dentro de uma sala de audiência. No coração do Poder Judiciário. Assistimos à inaceitável revitimização da vítima. E entendemos, assim, o motivo pelo qual tantas e tantas mulheres optam por não denunciar crimes.
Por fim, a mídia: veículos de comunicação noticiaram – falsamente – que a sentença teria reconhecido a existência de um absurdo “estupro culposo”. Veículos de comunicação publicaram – manipuladamente – trechos específicos da audiência de Mariana. Há quem diga, elogiosamente, que foi estratégia para lançar luzes à (tão essencial) pauta. Não: foi um desserviço à (tão essencial) pauta. Primeiro, porque fake news não são e nunca serão estratégia válida, para a pauta que for. Segundo, porque cá estamos: gastando linhas e tinta para explicar que não, não houve menção à figura do “estupro culposo” e que sim, houve (re)cortes indevidos na audiência inicialmente divulgada, restando poucos caracteres para dizer que, afinal, não é esse o ponto. Nunca foi.
Em suma e em pleno 2020, é inaceitável que uma mulher precise, literalmente, implorar para ser respeitada. Seja em uma casa noturna em Florianópolis, seja em uma sala de audiência.
Marion Bach, advogada criminalista, mestre em Direito do Estado e doutoranda em Ciências Criminais, é conselheira estadual da OAB/PR e professora de Direito Penal.