O discurso de austeridade baseado na crise fiscal do Estado tem possibilitado que os direitos sociais sejam moeda de troca enquanto fonte de resposta à crise, manifestando indiferença quanto aos danos resultantes do aumento de desigualdades e do empobrecimento. Objetiva convencer a todos que as distribuições injustas de sacrifícios sociais são aceitáveis para o bem-estar de poucos. O processo de privatização da Eletrobrás não é uma exceção.
Comecemos pelo que se diz. Há a idolatria dos meios e a pouca atenção aos fins do desenvolvimento, um culto ao controle de déficits, dos grandes equilíbrios e pouquíssima discussão sobre um real projeto de desenvolvimento. Sob a ótica dos meios, a venda da estatal é prevista com um preço muito inferior ao seu real valor. O montante, mesmo que a menor, seria destinado para cobrir o déficit público. Basta comparar os números para perceber que o valor de abatimento será irrisório.
Porém, antes fosse apenas um problema. Mas não. Trata-se de uma medida ruim para o cidadão e para o empresário.
A venda da estatal é prevista com um preço muito inferior ao seu real valor
Do ponto de vista do cidadão, um primeiro e imediato perigo é o aumento da tarifa de energia. Os investidores não são ingênuos e, de forma evidente, calcularão os riscos da operação da privatização. Com a ausência do Estado – outrora avalista da solidariedade nacional, mas que hoje só pensa em se descompromissar –, a primeira saída será elevar o preço pago pelo consumidor para que se dê conta da manutenção da empresa: é o natural da lógica do mercado.
A grande diferença é que o objeto do serviço não é um mero bem de consumo. Trata-se de serviço essencial aos cidadãos, em que a intervenção direta do Estado é determinada pela Constituição, que não admite a subsidiariedade estatal. Some-se a isso que a promessa oficial de aumento de empregos por meio da reforma trabalhista, obviamente, não se cumpriu. O cenário que se tem é o de uma população paulatinamente empobrecida e desempregada, dependente do fornecimento de energia elétrica, que está sendo colocada como refém de um aumento de despesas em seus orçamentos domésticos.
O livre mercado beneficia o consumidor: Eletrobras: gargalo brasileiro (artigo de Françoise Iatski de Lima, mestre em Desenvolvimento Econômico)
Já para o empresário, menciono um dos inúmeros problemas: com a desestatização a empresa poderá entrar em colapso em razão dos compromissos contratuais vigentes. Atualmente a Eletrobrás conta com dois títulos bond (uma forma de alcançar investimentos para projetos), em que são previstas cláusulas de cobertura que permitem a cobrança antecipada das dívidas em caso de mudança do controle societário da empresa. Ou seja, os credores poderão ingressar com ações judiciais exigindo imediatamente tais valores, cujo caixa é inexistente para o pagamento, impactando na estabilidade do setor energético e acarretando maiores problemas econômicos ao país.
Essa medida pode ser tudo, mas não é, com certeza, uma forma real do “país seguir crescendo”. As inúmeras críticas tecidas ao projeto não são dependentes exclusivas de posicionamentos políticos de esquerda ou fruto de uma má vontade nacionalista. Essa privatização, se analisada de forma séria, não encontra suporte em nenhuma vertente do desenvolvimentismo, sequer nas mais ortodoxas. A proposta é a um só tempo superficial e mal direcionada, sendo que a forma prática mais banal é a ênfase conferida a um Estado que só serve se for subsidiário, só serve se for esgotado.
Tuany Baron de Vargas, advogada, é mestranda em Direito na UFPR. Pesquisadora do Traepp – Grupo de Estudos em Trabalho, Economia e Políticas Públicas (PPGD/UFPR). Especialista em Políticas Públicas pela CLACSO. Professora do Curso de Formação Política para mulheres (UFPR/UERJ). Bacharel em direito pela UFPR.
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