Quando os espanhóis chegaram à cidade de México-Tenochtitlán, junto com Hernán Cortés, ficaram assombrados e admirados, quase sem palavras, diante de tanta beleza... A ponto de o conquistador comparar a cidade com Veneza para concluir que México-Tenochtitlán era, surpreendentemente, muito mais bela.
E, mesmo assim, os espanhóis achavam que eram superiores. Superiores, é claro, tanto intelectual quanto moralmente. Tinham, mesmo contra toda evidência, uma cultura superior, porque afinal eram herdeiros de gregos e troianos, bem como beberam na tradição jurídica dos romanos. E tinham também – e para isso não precisavam de evidência alguma – a superioridade moral de estarem na verdade. Aliás, não era bem assim. Não se tratava de estarem na verdade, mas de acharem que tinham a verdade. E a tinham porque eram superiores... Tratava-se de uma tautologia, um círculo que se fechava sobre si mesmo: somos bons porque somos melhores. E somos melhores porque somos bons.
Tudo isso, toda essa superioridade moral e intelectual, era algo exclusivamente bem do ponto de vista deles mesmos. Um ponto de vista tão fechado sobre o próprio umbigo que não lhes permitia sequer enxergar a contradição em que se encontravam: se México-Tenochtitlán era superior e muito mais bela que a própria Veneza, então... então, não deveriam ser tão superiores assim...
Foi por isso – é claro que por outros motivos também, mas principalmente por isso – que não tiveram muitos conflitos de consciência enquanto desqualificavam, destruíam e colocavam no esquecimento e no ostracismo tudo aquilo que significava ou representava a maneira asteca-mexica de ver as coisas e o mundo, porque, como os próprios espanhóis afirmavam orgulhosamente, essa maneira de pensar estava errada, enquanto a maneira dos espanhóis não é que estava, é que simplesmente era a maneira certa.
Contudo, o mais surpreendente é ficarmos sabendo que os astecas-mexicas fizeram o mesmo com a civilização tolteca, que estava assentada na região de Tenochtitlán muitos séculos antes da chegada dos astecas, que, vindos do norte, também foram invasores (como os espanhóis) e também queimaram os códices antigos dos toltecas e também qualificaram as ideias e opiniões toltecas como erradas e inferiores moralmente.
Mais surpreendente ainda é lermos o trabalho de Immanuel Wallerstein O universalismo europeu: A retórica do poder e perceber como esse processo de desqualificação do pensamento alheio, como essa desaforada violência para eliminar do debate público e proibir qualquer manifestação contrária ao “discurso hegemônico” faz parte de uma longa estrutura de poder simbólico e repressor inaugurada com o centralismo e o universalismo europeu, e que se caracteriza precisamente pela reivindicação de que “nós estamos certos” porque “somos melhores que vocês”. E “vocês não podem falar nada” porque“não têm autoridade moral para dizer nada”.
Wallerstein traz uma vasta série de exemplos, de todas as épocas, para comprovar a tese de como a supremacia moral pode ser muitas vezes – e parece que está sendo em tempos atuais – muito mais perigosa e mais violenta e impiedosa que outros tipos de supremacia (racial, sexual, de gênero etc.) que, tristemente, já fizeram enormes estragos e provocaram imensos danos nas nossas sociedades: desde a ideia de que os espanhóis foram eleitos para converter todos os indígenas, por bem ou por mal, à fé católica; passando pelo sonho iluminista de que a Razão europeia acabaria por civilizar definitivamente o mundo nas trevas; ou pelos discursos, algo mais recentes, de que a civilização ocidental estaria sendo atacada pelo terrorismo islâmico e que, portanto, como se queria demonstrar, nós somos superiores moralmente a eles...
Até certo ponto, perceber uma coisa destas não deveria causar espanto. Afinal, nem todos os períodos da história foram democráticos e, na maior parte das vezes, quem ganha é quem passa a ditar as regras do jogo.
Mas o que sim deveria surpreender, e até mesmo assustar, é o fenômeno ao qual estamos assistindo, entre assombrados e perplexos: um grupo – normalmente um coletivo, um grupo de professores ou intelectuais, alguns formadores de opinião, uma rede de televisão ou empresa jornalística –, normalmente autointitulado “de esquerda”, declara-se “moralmente superior” pelo simples fato de “ser de esquerda”. E pede e requer e exige não que acabe ou que se encerre o debate, mas simplesmente que não haja debate algum, já que eles são muito superiores...
Até pouco tempo atrás, na esfera pública, na política e na vida acadêmica, principalmente, prevaleciam as teses de Habermas, que acreditava – como tantos de nós, de esquerda, de direita e de centro – que o espaço público era o lugar privilegiado do debate racional, onde cada grupo e cada um dentro dos seus grupos podia livremente expor sua opinião e vê-la discutida a partir dos diversos pontos de vista que, normalmente, eram opostos, mas nem por isso excludentes. Havia (e acreditava-se que era bom que houvesse, repito: na esquerda, principalmente na esquerda, na direita e no centro) um debate público para se chegar a pontos em comum.
Tudo isso desapareceu. Como os toltecas, como os astecas-mexicas, como tantos perdedores da história... Só há um único discurso e um único ponto de vista, que é o do supremacismo moral, que se autojustifica a si mesmo pelo fato de ser melhor porque é melhor. Porque a esquerda é melhor que a direita. E ponto. Ou vice-versa. O problema e o perigo é o mesmo.
É realmente assustador que alguém seja proibido de expressar livremente a sua opinião e seja banido simplesmente porque outro alguém (ou muitos outros “alguéns”) decidiu que é superior moralmente falando e que, portanto, os outros não podem falar o contrário do que eles pensam.
É claro que as coisas que estão em discussão são temas extremamente delicados e relevantes. E é claro que os pontos de vista são muito diferentes e, muitas vezes, muito opostos. Mesmo assim, não há direito à autoproclamação de superioridade moral. Não há mesmo nenhuma moral em quem se declara moralmente superior e, por isso mesmo, encerra o debate.
Se alguém for mesmo superior, terá de mostrá-lo com os seus argumentos e terá de procurar convencer os outros de estar com a razão. E, se não for assim, se pretender apenas declarar-se vencedor de um debate inexistente pelo simples motivo de achar-se superior ao resto dos mortais, o único que cabe fazer é colocá-lo no seu devido lugar – que, como provavelmente diria Aristóteles, seria o lugar dos tolos ou dos insensatos. Ou dos intolerantes e intransigentes.
Rafael Ruiz é professor associado de História da América da Unifesp.
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