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A tensão construtiva entre fé e razão

(Foto: Fabio Abreu)

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O pensamento moderno normalmente coloca a razão e a fé em conflito, como se um fosse antagônico ao outro. No caso mais extremado, temos os iluministas franceses que queriam abandonar completamente os tempos de “obscurantismo” e “superstição”, colocando em seu lugar o Templo da Razão, ainda que por meio de uma sangrenta revolução. Mas será que para mergulhar na razão é preciso abandonar a fé?

Samuel Gregg, do Acton Institute, argumenta que não. Em seu livro Reason, Faith and the Struggle for Western Civilization, Gregg sustenta que fé e razão são complementares, uma pode corrigir os excessos da outra, e que a tensão entre ambas tem sido o grande trunfo da civilização ocidental.

Não se trata de desejar retornar aos tempos pré-iluminismo, mas sim compreender que não é marginalizando o legado da fé judaico-cristã que vamos preservar nossa civilização. Sua principal fonte é Joseph Raztinger, o Papa Bento XVI, que é reconhecido por muitos como grande teólogo e também filósofo. A preocupação com o abandono da fé em nome da razão sempre esteve no cerne das preocupações do papa.

Enfrentar as doenças da ideologia, com suas explicações simplistas e mono-causais, é o grande desafio do Ocidente hoje. A resposta islâmica não é satisfatória, e quem leva a sério a razão não pode responder a críticas com insultos, ameaças ou violência. Mas sem a fé, ficamos à mercê de desvios da razão, como o cientificismo, o marxismo ou o relativismo moral de Nietzsche, onde impera a “potência”.

O Ocidente atingiu um patamar ímpar de civilidade e isso se deu com base em certos valores que não podem ser ignorados impunemente. Tanto o general De Gaulle como Churchill, ao lutarem contra o nazismo, colocaram como missão salvar aspirações universais e conquistas concernentes à toda humanidade. Liberdade individual, império da lei, governo limitado, divisão entre Igreja e Estado, direitos humanos, tudo isso são conceitos que encontram expressão na Civilização Ocidental, e não por acaso.

Para Gregg, como para tantos outros, esses valores são indissociáveis do legado cristão. Outras culturas não dão a mesma importância à liberdade individual, por exemplo, e adotar a “modernização” da técnica não é sinônimo de abraçar a “ocidentalização” como a conhecemos. Para o autor, essa liberdade maior no Ocidente se deve ao compromisso de uma busca racional pela verdade, que de forma alguma seria incompatível com a fé em Deus, mas sim dela derivada.

Para os cristãos, fomos criados à imagem de Deus, ou seja, nossa própria inteligência é uma dádiva e precisamos utilizá-la para chegar ao divino, à Verdade. O conceito de livre-arbítrio também seria fundamental para preservar a liberdade, justamente porque cada um deve escolher se vai transcender ou não a mediocridade moral. Não podemos esquecer que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso porque optaram por desobedecer a Deus.

É verdade que regimes totalitários surgiram no Ocidente, e em nome da ciência ou da razão. Esse é mais um ponto para reforçar a mensagem do livro, de que a razão “pura” não basta, podemos acabar como o burocrata nazista elogiando a eficiência da técnica de extermínio. É exatamente a combinação da razão com a fé que pode nos colocar no caminho certo. Esses casos de ideologias genocidas seriam um desvio da razão, não sua aplicação devida.

Ao colocar Deus como um Ser racional, o cristianismo influenciou bastante a cultura ocidental, afastando-a da mera submissão a deuses voluntaristas. Deus seria a razão incarnada, o Logos, e nós, criados à sua imagem, podemos conhecer a Verdade, e assim nos libertar. Ao constatar que isso cabe, porém, à nossa própria escolha, o cristianismo ressaltou a importância da liberdade, responsabilizando os homens por seus atos pecaminosos.

O homem cristão é livre, mas para alguma coisa, e essa coisa é a busca da Verdade, da excelência moral. Não se trata apenas da ausência de restrições, uma licenciosidade libertina, e sim de aspirações para se aproximar do ideal divino. Usando nossa razão, aliada à nossa fé, podemos compreender melhor o mundo e liberar seu potencial, desde que em nome dessa Verdade.

Eis então, em resumo, os três ensinamentos cristãos: a natureza racional de Deus, uma lei natural que todos podem compreender, e a liberdade humana como poder para escolher o que é bom e verdadeiro. Graças a isso, os ocidentais combinavam o universalismo com o respeito pela razão e a liberdade, e um chamado para cada um mudar a si mesmo e seu entorno para melhor.

Talvez um bom exemplo dessa integração entre fé e razão esteja no Iluminismo escocês, bem mais humilde do que o francês, e voltado para o avanço da sociedade, mas sem fazer tábula rasa do passado, sem transformar o homem num Prometeu moderno, do tipo que deseja remodelar todo mundo à sua própria imagem arrogante e narcísica. Para Gregg, Marx, John Stuart Mill e Nietzsche representam ícones dessa visão prometeica, que influenciaram patologias da razão ao se fecharem para a fé.

Na Encíclica Fides et Ratio, o papa João Paulo II defendeu a importância de conciliarmos razão e fé: “O caráter peculiar do texto bíblico reside na convicção de que existe uma unidade profunda e indivisível entre o conhecimento da razão e o da fé”. Como consta no livro dos Provérbios, a mente do homem dispõe o seu caminho, mas é o Senhor quem dirige os seus passos. Para o papa, isso deixa claro que “o homem, pela luz da razão, pode reconhecer a sua estrada, mas percorrê-la de maneira decidida, sem obstáculos e até o ao fim, ele só consegue se, de ânimo reto, integrar a sua pesquisa no horizonte da fé”. E conclui: “Por isso, a razão e a fé não podem ser separadas, sem fazer com que o homem perca a possibilidade de conhecer de modo adequado a si mesmo, o mundo e Deus”.

A cegueira do orgulho ocorre quando a razão vira prisioneira de si mesmo, quando nos iludimos com nossa inteligência, sem reconhecer sua origem em um Ser inteligente. Caímos assim no niilismo, no relativismo ou no utilitarismo materialista, fugas para a busca da Verdade. A razão vira, nesses casos, mero instrumento que pode ser usado para o mal. O papa resume: “A razão, privada do contributo da Revelação, percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final”.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.

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