De todos os voos espaciais já realizados, o Apollo 8 talvez seja o que melhor demonstrou a capacidade da Nasa de mudar a perspectiva humana. Analisando a missão – a primeira circunavegação da Lua –, Bill Anders, um dos três a bordo da nave, disse: “Viemos aqui, após percorrer esse longo caminho, para explorar a Lua, mas o mais importante é que descobrimos a Terra”. O astronauta foi quem tirou a foto que ficou conhecida como “Nascer da Terra”, a primeira imagem do planeta capturada por um ser humano além de sua órbita. Como o colega e também tripulante Jim Lovell observou: “De repente, todo mundo pôde ver a Terra como ela é realmente: um oásis grandioso na vastidão do espaço”.
Talvez pareça contraditório achar que a exploração espacial, com todos os riscos e a glória em que implica, basicamente revele verdades sobre nosso próprio planeta, mas é o que acontece. Esta semana comemora-se os 60 anos da fundação da Nasa. Estamos trabalhando em um documentário sobre a agência, e esse conceito foi repetido por todos as 45 pessoas que entrevistamos, entre astronautas, cientistas, administradores e historiadores.
Logo no comecinho, a Nasa descobriu duas verdades importantes: a primeira, que o nosso planeta era o único no Sistema Solar com um ambiente capaz de manter a vida e, portanto, extraordinário; a segunda, que o ambiente do planeta era fundamentalmente frágil, protegido por uma camada atmosférica fina e iridescente, suscetível aos danos eventualmente causados por seus habitantes.
Isso se torna cada vez mais aparente com o aquecimento resultante das emissões de gases estufa. A Nasa hoje se encontra na estranha posição de monitorar o embrião de uma crise planetária que o próprio Donald Trump ignora. Felizmente, a iniciativa de seu governo de cortar quatro missões do programa Earth Science, que monitoram o planeta, foi barrada pelo Congresso este ano.
No livro O Cérebro de Broca, Carl Sagan escreveu: “De longe, o momento mais empolgante, satisfatório e revigorante para se estar vivo é aquele em que passamos da ignorância ao conhecimento”. Ao longo das últimas seis décadas, a Nasa nos guiou nessa jornada, alterando não só nossa compreensão do universo, mas também de nós mesmos.
Os mesmos instrumentos que estavam usando para fornecer dados científicos para a aterrissagem lunar poderiam ser usados para avaliar o nosso próprio mundo
Durante o programa Apollo, a agência percebeu que os mesmos instrumentos que estavam usando para fornecer dados científicos para a aterrissagem lunar poderiam ser usados para avaliar o nosso próprio mundo. Em 1972, o governo lançou o primeiro satélite Landsat, com sensores remotos capazes de medir a superfície terrestre e acompanhá-la com o tempo.
Embora esse trabalho científico sobre a Terra sempre respondesse por uma fração de seu orçamento, a Nasa incluiu o programa nas décadas seguintes. Em 1989, George H.W. Bush endossou a Mission to Planet Earth (“Missão ao Planeta Terra”), iniciativa para entender como a atmosfera, os oceanos e a biosfera funcionam enquanto sistema único. O então presidente se referiu a ele como “um dos programas científicos mais abrangentes e urgentes do país”.
Para realizá-la, a Nasa reuniu oceanógrafos, geólogos, meteorologistas e outros especialistas sob uma nova disciplina chamada Earth System Science; além disso, lançou mais de duas dúzias de satélites com o objetivo de estudar todos os aspectos do clima da Terra.
Do espaço, o órgão pode medir e monitorar, direta e continuamente, praticamente todos os aspectos dos sistemas terrestres: oceanos, desertos, placas de gelo, nuvens, chuva e a vegetação. E também temos os dados dos cientistas que fazem o trabalho de campo em vários pontos do planeta, da Groenlândia a Palau, da Antártida ao Ártico.
As informações reunidas são compartilhadas com outros departamentos governamentais e organizações ao redor do mundo, incluindo a Agência Federal de Gestão de Emergências, a Administração Nacional Atmosférica e Oceânica, os Departamentos de Agricultura e Defesa, e muitos outros. São dados que também alimentam modelos computacionais, que oferecem um registro das mudanças no meio ambiente e nos ajudam a fazer uma previsão para o futuro. Os dados dos satélites são a diferença entre a ignorância e o conhecimento, e não deixam dúvidas de que nosso planeta está se aquecendo a uma velocidade cada vez maior. A consequência não é só um aumento na temperatura, mas também secas, incêndios, enchentes, furacões e outras manifestações climáticas extremas.
José Pio Martins: Ciência e positivismo (publicado em 16 de fevereiro de 2018)
Leia também: O desmonte da ciência e da pesquisa no Brasil (artigo de Lafaiete Neves, publicado em 16 de agosto de 2018)
Como o astronauta e cientista do clima Piers Sellers, morto em 2016, disse: “Montamos nossa civilização em cima do clima atual. Nossas cidades costeiras, nossos recursos alimentares e hídricos estão todos amarrados a ele, mas não há muito espaço para descuido ou descaso”. Apesar disso, os modelos da Nasa estão nos avisando que as temperaturas estão subindo e, com isso, o planeta está mudando radicalmente.
De todas as suas grandes e inestimáveis conquistas, uma das mais significativas foi a aquisição e compartilhamento desse conhecimento. Ao nos alertar da crise da mudança climática, deu à humanidade uma nova chance. Acontece que a agência é apartidária e civil; tem apenas condições de nos fornecer os dados. A ação depende de nós, através dos líderes que elegemos.
Há cerca de 60 anos, pouco depois da fundação da Nasa, John F. Kennedy nos desafiou a levar o homem à Lua. Foi um momento em que o país inteiro se uniu pelo objetivo certo no momento certo e que, com toda a expectativa que seria esperada, deu certo. Hoje, enfrentamos um desafio muito maior, o de protegermos o planeta. A questão, entretanto, é: onde está a liderança? Quem pode nos unir?
Tragicamente, apesar de todas as informações que a Nasa acumulou e analisou sobre a ameaça ao nosso planeta, Trump preferiu, de livre e espontânea vontade, manter-se na ignorância – uma traição tão completa, profunda e cheia de consequências que certamente ficará registrada como o maior crime de sua gestão.
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