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Estátua de Sócrates em Atenas.
Estátua de Sócrates, em Atenas.| Foto: Creative Commons

No mundo contemporâneo, uma escolha feita por um coletivo através da via democrática, ou seja, pelo voto majoritário, raramente é contestada. A sensação de pertencimento na tomada de decisões, ao menos eleitoralmente, cria a percepção de um sistema justo, avesso ao tiranismo. Embora tirania e democracia ocupem espaços antagônicos no imaginário coletivo contemporâneo, não são fenômenos excludentes, mas, sim, complementares, co-dependentes.

A palavra democracia tornou-se gatilho de algo bom, justo. O termo dēmokratía, original do grego, é a justaposição de duas outras palavras: demos e kratos, ou seja, povo e governo, respectivamente. Logo, governo do povo. Esse formato de governo surgiu em Atenas, cidade-Estado da Grécia antiga. Há um engano comum na compreensão histórica desse período, pois apenas filhos de pais atenienses, homens e de certo poderio econômico – características encontradas em apenas 8% da população ateniense da época – poderiam participar do processo político. Sócrates, pai da filosofia ocidental, por exemplo, foi condenado sob a vigência de um regime democrático. Seu crime: a busca da verdade filosófica, nem sempre agradável ou conveniente.

Por conseguinte, democracia e república não coexistem, são paradoxais, excludentes. Sim, são séculos e séculos de construções equivocadas, desinformação, oportunismo e falsos intelectuais.

Platão, discípulo socrático, percebeu algo que Thomas Hobbes, filósofo inglês, 18 séculos depois, esmiuçou no indispensável O Leviatã, no qual conclui que o homem é seu próprio predador, seu maior inimigo. Dessa forma, Platão delineia aquilo que acredita ser a solução para a ganância humana: somente os filósofos, norteados pelos princípios maiêuticos socráticos, aqueles que saíram da caverna, poderiam governar pelo bem comum, livres das tentações e fúteis problemáticas rotineiras.

Aristóteles, todavia, estabelece grande ruptura com Platão, seu professor. O tutor de Alexandre, o Grande, no livro III da Política, faz uma distinção de governos: refere-se à forma pela qual o governante age, para o interesse privado ou para o bem comum. Quando se governa para o bem comum, age-se segundo os princípios da justiça, logo, se pratica a verdadeira forma da política. Um governo norteado pelo interesse privado (egoísta, explorador) passou a ser tratado como uma forma devassa de exercício do poder. Assim, Aristóteles cunhou como degenerados/egoístas quem pratica a tirania (governo de um só), a oligarquia (poucos exercendo o poder) e, surpresa, a democracia. Sim, ao analisar a experiência histórica do homem e de sua natureza, o filósofo concluiu que há a latente necessidade de normas e instituições, nas quais seriam mediadas as relações humanas.

Quando há a sobreposição da vontade popular sobre tais controles, há, então, um governo democrático, uma ditadura da maioria. Aristóteles anteviu a soltura de Barrabás. "Quando os decretos da assembléia popular se sobrepõem às leis, tal situação é provocada pelos demagogos”. Em contrapartida, o filósofo também apontou que “efetivamente, o homem, quando perfeito, é o melhor dos animais, mas é também o pior de todos quando afastado da lei e da justiça, pois a injustiça é mais perniciosa quando armada, e o homem nasce dotado de armas para serem usadas pela inteligência e pelo talento, mas podem sê-lo em sentido inteiramente oposto. A justiça é a base da sociedade; sua aplicação assegura a ordem na comunidade social”.

Preto no branco, o pensador concebeu aquilo que, centenas de anos depois, foi chamado de Rule of Law, ou seja, o governo das leis e instituições. Alicerçado no conceito platônico, Aristóteles apregoava que uma sociedade justa teria de ser pensada e estruturada por um grupo de indivíduos especiais, dedicados à filosofia, mas com o norte de fundar instituições e normativas que impedissem qualquer aspiração tirânica.

Como? Pesos e contrapesos. Um poder vigia o outro. A res publica (coisa pública) romana foi concebida sob tal arcabouço de ideais. O sistema de dois cônsules mostra isso. Não obstante, há uma perspectiva angular nessa concepção: impedir o domínio da maioria, mesmo no sistema eleitoral. A ditadura dos 50,01%. E, claro, há o mais espúrio fenômeno democrático, o populismo.

Por conseguinte, democracia e república não coexistem, são paradoxais, excludentes. Sim, são séculos e séculos de construções equivocadas, desinformação, oportunismo e falsos intelectuais. Mesmo Montesquieu, criador da tripartição dos poderes, não compreendeu tão bem tal distinção, até pelo contexto despótico pelo qual passava a Europa moderna.

Provavelmente, a compreensão plena da temática e sua aplicação mais eficaz tenha ocorrido na fundação dos Estados Unidos da América, a única nação do mundo que permanece intocado por tiranos e ditaduras. Benjamin Franklin, um dos pais fundadores americanos, afirmou certa vez que “democracia são dois lobos e uma ovelha decidindo o que comer no jantar”. Walter Williams, famoso economista americano, ressaltou que “em uma democracia, a maioria manda seja diretamente, seja através de seus representantes eleitos. A lei é qualquer coisa que o governo determine que seja. Direitos podem ser dados ou tomados”. Democracia e tirania podem, sim, caminhar juntas.

Marcos Paulo Candeloro é cientista político e historiador.

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