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Numa palestra sobre os novos desafios para a jusfilosofia nestes tempos, um aluno questionou-me sobre a contribuição desse ramo para a superação do politicamente correto nos tribunais, normalmente, apresentado por meio de teses muito palatáveis e atraentes, mas que, num exame mais profundo, não passam de caprichos juridicizados ou legalizados.
Respondi-lhe que a jusfilosofia poderia fazer muito pelo esclarecimento da linguagem jurídica, porque o profissional do direito sempre emprega um conjunto de termos e conceitos – pessoa, sanção, interesse, responsabilidade, liberdade, poder-dever, sexo, vida, morte, casamento, união estável – cujo sentido e alcance, como problema filosófico da linguagem, surge desde a questão da justiça das palavras em Crátilo de Platão.
Contudo, ressaltei que, diferentemente de épocas anteriores, o ambiente anda bem tenso nessa dimensão da linguagem, porque, em razão da mudança de muitos valores sociais nas últimas décadas, pavimentada pelo paradigma da “tolerância”, formou-se uma outra ortodoxia, cujo atributo principal é muito inovador: a tentação de, a todo tempo, silenciar a parte dissidente racionalmente acerca do conteúdo daqueles termos e conceitos. É a tolerância dos intolerantes.
Pela via do assédio midiático ou da pressão social, muitas vezes, é feita uma tentativa de se criar um clima social no qual é considerado inadmissível se propor uma racionalidade oposta. Quando estavam em minoria, esses intolerantes apoiavam propostas alternativas de valores e qualquer tentativa de silenciá-los era denunciada como opressão ou autoritarismo.
Seria de esperar que esses intolerantes, agora, mantivessem essa atitude aberta e dialogada racionalmente. Mas, agora que conduzem o timão social, odeiam – e essa é a expressão mais fidedigna a respeito – que alguém ouse propor qualquer racionalidade alternativa ao seu próprio credo de valores. Certamente, faltaram nas aulas de Locke no ensino médio, para não voltar muito longe na história do pensamento sobre a tolerância.
Vejamos alguns exemplos concretos da tolerância dos intolerantes. Uma maneira de defender sua própria hegemonia é, simplesmente, remover uma questão do debate social. Alguém poderia pensar que, numa sociedade pluralista, todos têm o direito de expressar suas próprias ideias e lutar por elas.
Mas não. Basta olhar para as reações às tentativas de, no campo parlamentar, freiar-se a liberalização do aborto: tudo não passaria de um ataque aos “direitos reprodutivos” das mulheres. Não se quer discutir se a lei atual evitou muitos abortos puníveis, nem se o feto é uma vida humana, nem se é protegido pela lei, nem se existem outras maneiras, como a adoção, de resolver um possível conflito de direitos. Basta dizer que se trata de um “direito” da mulher. As mulheres que são contra, como as três daqui de casa, simplesmente não contam.
Outro exemplo concreto está na “dimensão fóbica”: com "fobias", não pode haver debate racional. É um expediente muito conveniente, porque, de antemão, descartam-se as racionalidades contrárias e sérias como "fobias". O raciocínio é simples, por mais tosco que pareça.
A pessoa que apoiasse uma racionalidade divergente sofreria de um distúrbio ou de um déficit mental, que o levaria a adotar uma reação irracional. Portanto, não há nada para discutir com ele e, ao se redefinir uma idéia como "fobia", cancela-se o debate.
O movimento gay tem muita expertise nessa dimensão fóbica. Graças a esse artifício argumentativo, muitas leis contra a homofobia não só foram aprovadas pelo mundo afora como, ao mesmo tempo, descobrimos o nível intelectual de muitos legisladores: se uma fobia é patológica, logo, quem sofre disso não pode ser responsável, ao menos da forma proposta por aquele movimento, por seus atos.
Mas o adjetivo "homofóbico" não serve apenas para rotular esses bandos que maltratam ou insultam homossexuais de forma injusta e indigna. Por extensão, o termo passa a ser usado para desqualificar – antecipadamente – aqueles que opõem uma racionalidade respeitável e diferente daquela proposta pelo movimento gay.
Se você, caro leitor, acredita, por argumentos de razões públicas, que gays não poderiam se casar, que seria melhor uma criança ser criada por um pai e uma mãe do que um casal do mesmo sexo, que a promiscuidade é um dado forte no comportamento homossexual ou que só a lésbica grávida do casal tem direito à licença-maternidade, muito provavelmente suas idéias serão rotuladas como "homofóbicas".
Essa reação frustra qualquer possibilidade de debate e compreensão. A recusa sistemática de se levar a sério a capacidade racional dos dissidentes é a apoteose da estreiteza mental. Quando alguém recusa a submeter seu raciocínio ao escrutínio público, com a desculpa andrajosa de que aqueles que discordam são inevitalmente movidos por um 'ódio' ou uma 'fobia', os problemas em discussão dificilmente podem ser esclarecidos e a realidade das coisas vai permanecer oculta. Terminamos, assim, infantilmente envolvidos na “debatefobia” e os chamados safespaces são os exemplos prontos e acabados disso.
Tais "fobias" lembram uma maneira muito própria de se proceder na extinta URSS, onde muitos dissidentes eram mantidos em instalações psiquiátricas em pleno gozo das faculdades mentais. Hoje, ao invés desse tipo de reclusão espacial, recorre-se à reclusão virtual: estigmatiza-se o dissidente e impõem-se-lhe várias formas de desqualificação cultural e social.
No mais, é curioso notar que as mesmas pessoas que, no passado, rechaçaram a homossexualidade como uma doença psiquiátrica, agora, criam uma "fobia" que envolve justamente o menosprezo à saúde mental daqueles que divergem racionalmente.
Continuemos nos exemplos. O próximo pode ser denominado “agite um slogan”. Sabemos que um debate sempre exige argumentos e respostas, nuances e dados. Algo trabalhoso. Uma maneira preguiçosa de se safar desse trabalho é o de se cunhar um slogan que demonize a posição oposta e aberta à discussão.
Por exemplo, uma tentativa de reforma da gestão de um serviço estatal, como a saúde e a educação, abrindo-a à concorrência ou modificando suas condições de trabalho, pode ser simplesmente excluída pelo slogan da "privatização". Assim, o foco do debate migra do campo da tentativa de aprimoramento qualitativo do serviço público para o “da escamoteada colonização do serviço público a partir dos paradigmas do capitalismo opressor”.
Outro exemplo de silenciamento do adversário é o se de aplicar uma qualificação cunhada anteriormente para descaracterizar algum charlatanismo histórico ou social e readequá-lo ao pensamento divergente, como uma espécie de camisa de força, por mais estapafúrdio que fique o resultado final.
O rótulo de "negacionista", tradicionalmente usado para censurar aqueles que, contra todas as evidências empíricas, rejeitaram a realidade do Holocausto, foi reciclado para incapacitar aqueles que, minimamente, questionam o assunto da "mudança climática". Dá para, claramente, perceber o peso específico do qualificativo na desconstrução da pessoa que o faça.
Certamente, há muitos indícios da mudança climática provocada pelo manejo irracional e ganancioso dos recursos naturais em prol das atividades humanas, mas também é verdade que existem opiniões variadas e respeitáveis sobre a magnitude dessa mudança, o modo de enfrentá-la, suas consequências e a influência sazonal dos ciclos de esfriamento terrestre no clima global. Mas, ao invés de um sadio debate, supõe-se que o adversário seja um "negacionista”, isto é, alguém que age de má-fé e com quem é inútil discutir.
Outra variante para calar o adversário, mesmo por meio de processos judiciais, é o de qualificar suas palavras como "discurso de ódio". Simplesmente desaprovar o estilo de vida de um grupo ou discordar de sua pauta, baseado em argumentos de razões públicas, equivaleria a um comentário desastroso, que só pode ser motivado pelo ódio.
Se o movimento negro tem justas e legítimas reivindicações de racismo e, por isso, resolve usar a força para pressionar as autoridades, promovendo arruaça social à la Bakunin, caso um leitor negro, de linha política conservadora, venha a discordar publicamente tão somente dos meios e não dos fins, certamente, terá seu discurso qualificado como racista. Afinal, o único negro que pode ser conservador é o Darth Vader.
A questão do discurso de ódio gera o problema de se definir, civil e penal – mas, sempre prudencialmente – a fronteira entre o dano moral, a difamação, a injúria e as liberdades de expressão e de consciência. Aqueles que propõem penalizar e ressarcir o "discurso de ódio", frequentemente, invocam os danos sociais causados por tal tipo de discurso. Mas aquelas liberdades, além da capacidade de agir de acordo com elas, não devem ser impedidas tão e tão somente para que alguém não tenha suas suscetibilidades epidérmicas afetadas pelas críticas de outras pessoas.
As suspeitas sobre as verdadeiras intenções daqueles que invocam o "discurso de ódio" são reforçadas quando se observa que, geralmente, são grupos que não hesitam em usar uma linguagem mais virulenta contra seus oponentes ou que recorrem ao ativismo mais intolerante, como alguns movimentos feministas, cujas ideias acabam sendo ofuscadas pelo desfile de peitos e mamilos para todos os gostos.
Continuemos. O silêncio dos dissidentes também se manifesta por meio de ameaças de boicote a instituições ou empresas que têm opiniões contrárias às defendidas por um grupo. Essa prática foi muito manejada durante as campanhas sobre o casamento gay nos Estados Unidos.
Quando os grandes astros de Hollywood ou o fundador da Amazon doaram milhões de dólares para apoiar a causa do casamento gay, isso foi visto como exercício do direito de liberdade de expressão. Mas, quando o magnata da rede de restaurantes Chick-fil-A declarou, em entrevista, que a empresa apoia a família “papai-mamãe&filhos”, grupos ativistas gays vieram a público para solicitar um massivo boicote a seus restaurantes, somado ao fato de que os prefeitos de Chicago, Boston e San Francisco foram rápidos em dizer que a rede não seria bem recebida em suas comunidades, mesmo depois dele ter dito que sua rede nunca discriminou a orientação sexual de seus funcionários nem de seus clientes.
A lista do silêncio não para aqui. Outro exemplo é o truque do secularismo fundamentalista de rejeitar, desde o início, um verdadeiro debate público sobre argumentos defendidos pelos religiosos, porque, afinal, o crente, no fundo, repetiria seus dogmas e suas crenças particulares no afã de impor seus valores de maneira proselitista na arena social.
Sua fé deveria ser vivida pessoalmente e não poderia influenciar suas ideias sociais ou políticas, como se o ser humano fosse uma espécie esquizofrênica de díade público-privado e não uma unidade, em que o pensar pessoal está tensionado rumo a um agir, seja privado ou, principalmente, público, onde, aqui, sequer ele poderia propor bons e razoáveis argumentos de razões públicas, pois, afinal, haveria um vício originário de matiz religiosa, a macular todo o restante de sua cadeia argumentativa.
Portanto, admiti-los significaria render-se a uma "interferência" eclesial ou dos crentes na esfera politico-estatal e, assim, apenas o ponto de vista laico (rectius: laicista) deveria ser imposto a todos. Em princípio, num debate cívico, o que importa não são as razões subjetivas pelas quais alguém defende uma posição, mas suas razões objetivas.
Entretanto, o cômodo recurso da denúncia de uma suposta intromissão religiosa evita o desencadeamento de uma discussão, ainda mais se o argumento é bem fundamentado, como, por exemplo, o fato de que o dado religioso de uma nação, qualquer que seja a religião e qualquer que seja a nação, é um dado umbilicalmente cultural, ligado imemorialmente às mais longevas tradições geracionais da maioria da população e que, portanto, não pode ser banido pura e simplesmente pelo efeito de uma proposta laica (rectius: laicista).
Nesse campo, hoje, o perigo maior está na ação dos tentáculos do Leviatã estatal em pretender impor suas próprias convicções à esfera eclesial. Assistimos à essa ópera bufa nas recentes recomendações feitas pelo Comitê do Fundo dos Direitos da Criança das Nações Unidas (Unicef), que, ao superabundar de sua competência, aproveitou a oportunidade para solicitar que a Igreja Católica alterasse sua doutrina sobre o aborto, a homossexualidade e o acesso a adolescentes à contracepção ou, quando o governo Obama, para implementar a reforma da saúde, tentou impor ao empregador, no seguro de saúde, a cobertura de certos métodos contraceptivos e do aborto em favor dos empregados, ainda que isso fosse repugnante às suas convicções, sendo vedada a objeção de consciência.
Outras vezes, a interferência estatal chegou até mesmo à questões interna corporis. Quando o Sínodo da Igreja Anglicana decidiu, em 2012, não aprovar, por enquanto, a ordenação de mulheres bispos, muitos parlamentares trabalhistas não apenas insistiram que as mulheres deveriam ser bispos, mas também propuseram a aprovação de uma moção em que o Parlamento obrigasse a mesma Igreja a retomar o assunto, sem esperar pelo próximo Sínodo. Seria trágico, se não fosse cômico.
Ainda não acabamos. A intolerância dos tolerantes já chegou ao meu mundo, o acadêmico, alimentado por sutilezas epistemológicas, retórica sofisticada e sofística hermenêutica aplicada aos borbotões, porque, afinal, a adesão dos pensadores, cujos efeitos são sentidos, depois, na opinião publicada, deve ser incondicional, para que, aos olhos do cidadão, tudo pareça como uma solução de continuidade.
Um bom exemplo disso envolve a questão dos defensores da adoção por casais do mesmo sexo: cansam de repetir que os filhos criados nesses casais não têm nenhuma desvantagem em relação aos outros e, por isso, acrescentam vários estudos encomendados que representariam uma espécie de “consenso científico”.
Mas, se um sociólogo ou psicólogo, como aconteceu nos EUA com Mark Regnerus e Jordan Peterson, apresentar uma investigação completa que ofereça novas e importantes evidências das diferentes consequências de se ter filhos num lar homossexual e num outro “tradicional”, então, a liberdade acadêmica deixa de ser inviolável, porque a tolerância dos intolerantes chegou ao limite.
No caso dos estudiosos citados, ativistas gays chamaram suas conclusões de "fraudulentas" e "difamatórias" e até moveram os comitês acadêmicos de suas universidades para revisassem a metodologia científica do estudo, os quais, ao final, concluíram que os estudos de ambos eram sérios e gozavam de rigor científico.
E, no esforço de normalizar academicamente qualquer comportamento sexual (a pedofilia é a próxima da fila), a pressão ideológica e o voluntarismo político pedem o respaldo de “estudos” ou de “evidências científicas”, sempre coordenados cuidadosamente para que sirvam de justificação teórica para aqueles interesses práticos.
Nesse sentido, a resolução Lunacek, aprovada no Parlamento Europeu em 2017, solicita, com “lastro acadêmico”, à Organização Mundial de Saúde, “que remova os distúrbios de identidade de gênero da lista de transtornos mentais e comportamentais e garanta uma reclassificação desses distúrbios como distúrbios não patológicos". Já não conta o que a ciência diz, mas o que um lobby impõe.
A tolerância dos intolerantes quer obrigar, em nome da “tolerância”, a admitir, como bons e válidos, valores e práticas com as quais discordamos
Com efeito, a tolerância dos intolerantes também requer uma nova linguagem, ou melhor, uma mudança no significado das palavras. Assim, na melhor linha de um "orador" orwelliano, algumas palavras passam a significar exatamente o oposto de seu significado original.
Um amigo organizou um seminário sobre ideologia de gênero e reservou o salão de conferências de um grande hotel local. Pagou a taxa de reserva, mas, quando o prospecto do evento chegou às mãos de um dos funcionários do hotel, o staff desistiu do evento e devolveu a taxa, argumentando que eles não poderiam expressar opiniões contrárias ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, por ser contra a "política de diversidade" da corporação hoteleira. Em suma, a invocação ritual do respeito pela "diversidade" e pela "inclusão" pode servir para impor um pensamento único e excluir aquele que expressa uma opinião diferente.
Por fim, a ortodoxia da tolerância dos intolerantes é muito clara em seus propósitos. Em seu sentido genuíno, a intolerância se recusaria, sem muitas peias, a respeitar os direitos de outras pessoas. Agora, espalhou-se para algo que não é de forma alguma intolerância: o direito de recusar e dar boas outras escolhas para assuntos com os quais não concordamos.
A tolerância dos intolerantes quer obrigar, em nome da “tolerância”, a admitir, como bons e válidos, valores e práticas com as quais discordamos. O lema dessa ortodoxia poderia ser assim resumido: “Não basta dar a César o que é de César. É preciso enfiá-lo goela abaixo de todos”.
Esperamos, nessa toada radical, que o "crime de pensamento" orwelliano não seja alcançado. E, para não seguir esse caminho, sugerimos a essa nova ortodoxia o lembrete de Orwell em seu prefácio a Revolução dos Bichos: "Se liberdade significa alguma coisa, significa o direito de dizer aos outros o que eles não querem ouvir".
André Gonçalves Fernandes,Post-Ph.D., é juiz de direito, professor-coordenador de metodologia do direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp, professor-visitante da Universidade de Navarra e membro da Academia Campinense de Letras.