Em 1833, o matemático e economista William Forster Lloyd criou a teoria conhecida como “tragédia dos comuns”. Basicamente, a teoria diz que um recurso público disponibilizado de forma gratuita ou sem controle será superexplorado até seu esgotamento. O exemplo original da teoria é relacionado com pastagens. Pastores de um determinado local ampliaram seus rebanhos por meio do uso de pastagens públicas. O problema é que, exatamente por serem pastagens comuns, não foi realizado o manejo e nem os investimentos que normalmente eram empregados nas pastagens particulares. O resultado é que o ganho inicial obtido com o aumento dos rebanhos, com o passar do tempo, deixou de existir em razão do esgotamento do solo das pastagens públicas.
A explicação para isso é que, num ambiente de escassez, os indivíduos ajustam suas estratégias visando maximizar seus interesses, mesmo que isso eventualmente possa prejudicar a coletividade. Um exemplo é o rateio comum de contas de água de prédios ou condomínios. Normalmente, os usuários tendem a usar mais água do que fariam se a conta fosse individualizada. De certa forma, a ideia de William Foster se opõe ao pensamento de Adam Smith, de que a soma dos interesses individuais cria uma espécie de “mão invisível” que favorece o crescimento coletivo.
Existem inúmeras hipóteses relacionadas com a “tragédia dos comuns”, como o esgotamento de recursos pesqueiros de lagos, rios e oceanos; o abuso na utilização de saúde pública gratuita; o acesso indiscriminado ao Judiciário; o desmatamento de florestas públicas; ou a poluição em geral. É exatamente nesta questão do interesse individual contra o interesse coletivo é que a “tragédia dos comuns” guarda relação com a Ponte da Amizade.
Essa importante ligação entre o Brasil e o Paraguai também pode ser considerada um recurso público e finito, já que o fluxo de veículos e pessoas por meio da ponte é limitado. A questão é saber se a utilização deste recurso está atendendo a interesses individuais específicos ou à coletividade em geral.
O “tráfego circular” além de esgotar a capacidade da ponte também consome os recursos de fiscalização aduaneira
O esgotamento da capacidade da Ponte da Amizade é evidente. A rotina diária de filas de veículos e pessoas é inquestionável. Tanto que já está em andamento a construção de uma segunda ponte, e uma terceira já está sendo planejada. Sem dúvida a ampliação da ligação entre o Brasil e o Paraguai é algo importante. Mas será que só o aumento do número de pontes resolverá o problema do esgotamento da capacidade de tráfego de pessoas e veículos?
Provavelmente não. Caso o modelo atual seja mantido, a capacidade da segunda ponte também será esgotada rapidamente. Ocorre que, aparentemente, o uso dos recursos da Ponte da Amizade atende mais aos interesses individuais do que aos interesses coletivos, menosprezando a importância da ligação entre os dois países.
Qualquer um que venha a fazer o percurso em questão pode observar facilmente que o tráfego entre as aduanas tem um grande volume de táxis, mototáxis e vans paraguaias. Notoriamente, há um desequilíbrio em comparação com os prestadores de serviços de transportes de origem brasileira. Provavelmente este desequilíbrio decorre do fato de que a maior parte da frota de vans e táxis paraguaios é composta por veículos usados importados de outros países, o que dificulta a concorrência dos prestadores de serviços de transporte brasileiros em razão dos altos custos de venda de veículos no Brasil. O emprego de veículos desta natureza pelo Paraguai também favorece práticas ilegais, reduzindo as perdas (tradeoffs) com a apreensão de carros ou vans de baixo valor, que são usados para o transporte de ilícitos.
Mais grave do que isto talvez seja o fato de que grande parte do tráfego de veículos e pessoas entre as duas aduanas é “circular”, lembrando um carrossel, esteiras de bagagens de aeroportos ou sistemas industriais de movimentação de produção. A diferença é que, neste caso, a movimentação é feita por motos, carros e vans, que logo após desembarcarem pessoas e mercadorias, retornam ao “tráfego circular". Motos, vans e táxis que acabaram de chegar ao Paraguai novamente assumem posições privilegiadas na fila, próxima à aduana, retornando novamente para o Brasil, levando pessoas e mercadorias. Enquanto isso, o restante dos usuários da ponte aguarda, às vezes por horas, uma vaga no “tráfego circular”.
Do lado brasileiro, praticamente a mesma coisa acontece. As motos acessam um desvio, imediatamente depois da aduana brasileira, e retornam para o Paraguai. Vans e táxis têm de percorrer uma pequena distância dentro do território brasileiro até acessar um retorno exclusivo, que dá acesso à rodovia principal no sentido da Ponte da Amizade. Neste acesso, vans e táxis concorrem com os veículos particulares que rumam para a ponte. Como é um cruzamento, vale a lei do mais forte. No caso, levam vantagem os veículos maiores, como caminhões e ônibus, ou os veículos em piores condições. Novamente, vans e táxis paraguaios, pela sua origem (veículos usados importados) e condições ruins, levam vantagem na disputa com veículos particulares, pois têm menos a perder no caso de alguma colisão (tradeoff).
O “tráfego circular” além de esgotar a capacidade da ponte também consome os recursos de fiscalização aduaneira, migratória e policial, criando uma espécie de “cortina de fumaça” que dissimula a introdução de pessoas e ilícitos. Nesta perspectiva, o “tráfego circular” assume a função de “roleta da sorte” em que “passeiros”, “cotistas” e criminosos buscam aumentar as chances de sucesso, escolhendo o melhor momento para fazer a travessia entre as aduanas. Caso este modelo permaneça e seja replicado, seguramente a capacidade da segunda ponte será rapidamente esgotada, já que o uso destes recursos pode estar a serviço de interesses menos republicanos que os interesses da sociedade em geral. Não podemos esquecer que não estão em jogo apenas os custos com a construção de novas pontes. As novas ligações entre os países também demandam custos com aduanas, fiscalização, contratação de servidores públicos etc.
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A Receita Federal, juntamente com uma faculdade privada de Foz do Iguaçu, tem realizado anualmente estudos sobre o fluxo na Ponte da Amizade. Porém, aparentemente as pesquisas não abordam as questões aqui levantadas. Inclusive, existe um porcentual altíssimo de pessoas que optam por não responder questões formuladas durante a pesquisa de campo, sugerindo que realmente existem interesses obscuros por trás do fluxo da Ponte da Amizade.
O esgotamento da capacidade de tráfego da Ponte da Amizade também prejudica o comércio em geral entre os dois países, o fluxo de turistas, de estudantes e de trabalhadores que vão até o Paraguai. Os próprios caminhões que fazem o escoamento da safra ou que abastecem o Paraguai com bens de toda natureza também são reféns do “tráfego circular”.
Possivelmente, a solução para o problema está relacionada com alguma forma de regulamentação, que seguramente deve ser diferente da atual, que, por exemplo, obriga vans, táxis e mototáxis a voltarem sem passageiros, depois de fazerem a travessia entre os países. Esta regra é irracional do ponto de vista da escassez de vagas no tráfego, bem como sob a ótica ambiental, já que aumenta a queima de combustíveis fósseis, a poluição sonora etc. Por outro lado, certamente devem existir outros meios de transporte público mais eficientes e sustentáveis, como o transporte coletivo, as ciclovias e o uso de veículos compartilhados ou movidos a eletricidade – o que também estaria em harmonia com outro cartão postal da tríplice fronteira, a Usina de Itaipu, que também é compartilhada entre Brasil e Paraguai e é a maior produtora de energia renovável do mundo.
Cabe às autoridades de ambos os países investigar a serviço de quem está a Ponte da Amizade e, à comunidade da tríplice fronteira, buscar alternativas mais eficientes de mobilidade na travessia sem perder de vista questões migratórias, aduaneiras e relacionadas com combate a ilícitos.
Matheus Gaspar é juiz da 4.ª Vara Federal de Foz do Iguaçu.