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“O juízo não pode estimular o conflito no ambiente em que o acordo visou justamente a paz por entender que seria mais importante a formação de jurisprudência”
“O juízo não pode estimular o conflito no ambiente em que o acordo visou justamente a paz por entender que seria mais importante a formação de jurisprudência”| Foto: Pixabay

Desde o início, em 2016, chamou a atenção o fato de uma empresa de transporte de passageiros não anotar a carteira de trabalho de seus motoristas. Há anos sou usuário da Uber, mas jamais contratei um motorista, nunca negociei valores com ele – que, por sua vez, não podia recusar meu destino, restando-lhe apenas obedecer às diretrizes da plataforma.

Não suportar os encargos trabalhistas e previdenciários é o (compreensível) sonho de muitos empreendedores. Acredito que todo advogado trabalhista já se deparou com uma consulta a esse respeito. Mas, como geralmente as ideias apresentadas não passam de uma forma fraudulenta de burlar a legislação, é corriqueiro desestimularmos essas manobras, sob pena de o empresário acabar formando um impagável passivo trabalhista, capaz de inviabilizar totalmente a operação de seu negócio.

Mas, para a minha surpresa, a gigante Uber havia entrado nessa onda. Sob a bravata de que estaria apenas alugando a plataforma para os motoristas, a empresa se atirou numa aventura da qual só escapará se o seu tamanho for maior que a coragem daqueles que aplicam o direito no Brasil.

Outras empresas já tentaram fazer o que a Uber faz, mas nunca tiveram sucesso. Não se diga, portanto, que o Brasil é um país inseguro aos investidores e empresários, porque, no que toca ao vínculo de emprego, não temos insegurança nenhuma. Assim, desde a chegada da plataforma, já era plenamente possível perceber que aquele enorme castelo estava sendo construído sobre frágil areia da praia.

Outro ponto que não podemos ignorar é que a tendência mundial é a substituição do trabalho tradicional pelo trabalho mediado por plataformas eletrônicas, dotadas de algoritmos programados para comandar uma verdadeira multidão de “colaboradores”. É isso mesmo que queremos para o Brasil? Um futuro (breve) sem qualquer cobertura social, com pessoas humildes trabalhando até morrer, torcendo para não enfrentarem adversidades cotidianas, como doença, incapacidade ou velhice? Jogaremos fora todas as conquistas sociais, em nome de uma arcaica “modernidade”.

Enfim, como dizia minha avó, “onde passa boi, passa boiada”. Caso o Brasil permita que esse modelo fraudulento seja validado, dentro de pouco tempo não haverá mais direito algum para reivindicarmos. E apresento algumas razões que demonstram a ilegalidade da operação adotada pela Uber:

1. Os passageiros jamais contratam motoristas, sendo proibido qualquer grau de relacionamento entre um e outro, o que aniquila a alegação de que a Uber aluga sua plataforma ao motorista;

2. Motoristas não podem estipular os preços das viagens e são obrigados a concordar com toda negociação realizada entre a plataforma e o passageiro. A própria Uber reconhece que não é permitido ao motorista aplicar qualquer desconto, principalmente quando o pagamento for por meio de cartão de crédito;

3. Os motoristas trabalham com regularidade, não se tratando de uma simples “carona eventual”;

4. A subordinação operada por meios telemáticos e informatizados se equipara à empreendida por meios pessoais e diretos (artigo 6.º, parágrafo único, da CLT);

5. Os motoristas podem ser advertidos e até dispensados, caso não se adequarem à política da empresa;

6. A Uber realiza práticas coercitivas para que o motorista realize o maior número de viagens possível, inclusive distribuindo-os nos mais diversos pontos da cidade, de acordo com seus próprios interesses;

7. Apenas ao receber o passageiro em seu veículo é que o motorista toma conhecimento do destino da viagem, sem que possa recusar.

8. As avaliações dos passageiros servem como meio muito eficaz para fiscalizar e punir os motoristas, em evidente poder disciplinar típico da relação de emprego.

Não é porque alguém chama um cachorro de gato que ele começará a miar. Da mesma forma, não é porque a Uber chama seu empregado de “motorista parceiro” que a relação entre eles não é de emprego.

*Felipe Miranda Ferreira é advogado especialista em Direito e Processo do Trabalho.

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