Segundo a Avaliação de Ameaça Mundial da Inteligência Nacional deste ano e o depoimento de membros do alto escalão do setor, os norte-americanos podem esperar que Vladimir Putin continue a agravar as tensões sociais, políticas e raciais nos EUA e entre seus aliados.
Assim, em preparação para futuros ataques russos, devemos voltar o olhar para o passado, para os tempos da Guerra Fria, e analisar a lógica da KGB, agência de inteligência em que Putin passou seus anos de formação. A história da brutalidade dos serviços secretos soviéticos explica as raízes do uso atual de recursos como prisões políticas, subversão, assassinatos, notícias falsas, espionagem e manipulação de mentiras. Nenhuma dessas táticas é novidade para o Kremlin.
De fato, foram elas que fizeram da Rússia Soviética o primeiro “Estado espião” e lhe garantiram destaque entre outros países autoritários dirigidos por militares, reforçando ainda mais essa condição após o governo de quase vinte anos de Putin como seu homem forte. Na URSS, era o partido que governava; foi só depois da ascensão, nos anos 1980, de Yuri Andropov, modelo e mentor de Putin, que a KGB se tornou a instituição mais importante do país. Então, uma década depois da queda da União Soviética, Putin subiu ao poder e recrutou vários de seus antigos colegas para ajudá-lo a reconstruir a nação – e o resultado é um regime com as diretrizes e a filosofia de um serviço secreto superalimentado, que depende das operações de inteligência para lidar com os desafios da política externa e manter o controle interno.
Putin e seus comparsas se deram bem em um império onde a KGB era a espada e o escudo do governo – e não é à toa que eles regularmente se voltam para essas armas, testadas e aprovadas, para lidar com os problemas do século 21. Os serviços de inteligência foram usados até para drogar secretamente os atletas olímpicos e paraolímpicos russos, prova definitiva do alcance do “Estado espião”.
Tanto a Tcheka como suas sucessoras semearam o caos no exterior
Como foi que tudo começou? Depois da Revolução Bolchevique de 1917, Vladimir Lênin criou uma polícia secreta, chamada Tcheka, para ser sua principal arma de repressão e terror. Nas mãos de Félix Dzerjinsky, um revolucionário cruel, o objetivo da instituição era manter a liderança no poder a todo custo; servia de juiz, júri e executora para o Estado, usando sabotagem, censura, repressão e assassinatos para manter a população “na linha” e os inimigos externos afastados.
Ou como o próprio Dzerjinsky definiu: “Representamos o terrorismo organizado. A Tcheka deve defender a revolução e conquistar o inimigo, mesmo que, sem querer, a espada às vezes atinja a cabeça dos inocentes.”
Durante a direção de Dzerjinsky, monarquistas, socialistas, russos brancos e gente de fora conspiraram para derrubar Lênin e o governo bolchevique – e o organismo clandestino que reunia todas essas forças era a União Monarquista da Rússia Central, que operava secretamente não só dentro da União Soviética como por toda a Europa.
Só que os membros não sabiam que ela era uma armadilha – um verdadeiro pote de mel criado pela Tcheka para atrair os inimigos da União Soviética, identificá-los, neutralizá-los e matá-los. A polícia secreta, ainda que incipiente, enganou todos os serviços de espionagem europeus já estabelecidos – e, ao fazê-lo, mostrou toda a sua astúcia, paciência e crueldade. O britânico Sidney Reilly, inspiração para o James Bond de Ian Fleming, ainda que conhecido como o “ás dos espiões”, foi atraído para a União Soviética, interrogado e executado. O abuso de confiança se tornou modelo de um século inteiro de iniciativas subversivas soviéticas e russas, e a Tcheka continuou sendo fonte de orgulho para seus futuros agentes secretos – tanto que, até hoje, todos comemoram seu dia – 20 de dezembro –, inclusive Putin.
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Ao longo do tempo, os serviços secretos soviéticos e russos desenvolveram ferramentas e hábitos baseados na experiência tchekista que os diferenciaram de todas as agências ocidentais: em vez de se preocupar em coletar e analisar informações, ela se aprimorou em doutrinar, subverter, reprimir, enganar e matar.
De fato, o primeiro desertor de destaque do novo Estado bolchevique, Boris Bajanov, fugiu para a Índia britânica, em 1928, com assassinos em seu encalço. Ele, que foi secretário pessoal de Stálin, afirmou que a política externa básica do Kremlin era usar disfarces e simulação para enfraquecer a essência dos inimigos; assim, se houvesse uma guerra, ficaria mais fácil ganhá-la.
Tanto a Tcheka como suas sucessoras semearam o caos no exterior, com doutrinação, desinformação e sabotagem, enquanto promoviam prisões em massa e mantinham os gulags em território nacional. Bajanov chegou a dizer que as instituições culturais e diplomáticas soviéticas eram simples mecanismos disfarçados para enganar os intelectuais ocidentais, fomentar comoção comercial e política e enfraquecer as democracias a partir de si mesmas. Em outras palavras: seu objetivo era jogar poeira nos olhos dos ocidentais mais eruditos – e todos os desertores saíram de lá contando exatamente a mesma história.
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De fato, o Kremlin usou um exército de espiões e recrutou informantes ao redor do mundo para roubar segredos, espalhar desinformações e apoiar terroristas e regimes autoritários. Os serviços de segurança basearam sua guerra híbrida em um artifício chamado “controle reflexivo”, isto é, uma iniciativa para administrar as percepções dos inimigos, de forma que estes fossem levados a agir contra os próprios interesses. O método incluía distrair, cansar e confundir o oponente para controlar sua narrativa vital – um bom exemplo em nível mundial foi a “Operation Infektion”, cujo objetivo foi espalhar a história de que o vírus que causa a Aids era uma arma desenvolvida pelo Pentágono para destruir os países em desenvolvimento. Outro foi a operação russa engendrada para influenciar as eleições presidenciais norte-americanas de 2016.
Assassinatos também não são nada de novo. Ao chegar ao Ocidente, Bajanov revelou que a liderança soviética mandaria assassinos para matar quem quer que soubesse ou descobrisse os meandros do funcionamento do Kremlin. E a prática continua: a malfadada tentativa russa, em 2018, de matar Sergei Skripal na Inglaterra é praticamente indistinguível do assassinato do nacionalista ucraniano Stepan Bandera, em 1959, pela KGB. Na época, agentes o seguiram disfarçadamente até sua casa, em Munique, e usaram uma arma desenvolvida pela própria agência para borrifar veneno, fazendo com que a morte de Bandera parecesse um ataque cardíaco. E foi só graças à eventual deserção de seu assassino, anos depois, que a verdade foi revelada.
Ao procurar se aproximar da Rússia, os EUA têm de ter em mente que o tigre do Kremlin não mudará suas listras. A disposição russa de se defender a todo custo vem de uma insegurança profunda, resultado de séculos de invasões e desmantelamentos. Poucos países sofreram mais nesse aspecto. É por isso que o elemento central de seu estadismo é a enganação e o enfraquecimento de seus inimigos, de dentro para fora, e isso desde os tempos dos czares. Nesse sentido, suas ferramentas políticas de toma-lá-dá-cá, bem azeitadas, são justificáveis e lógicas, ainda que condenáveis.
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A união é nossa melhor defesa. Putin parece saber que não pode competir com o Ocidente em igualdade de condições. Ele usa a máquina tchekista de criar fumaça para assustar, confundir e paralisar seus inimigos, porque é o único recurso que possui – e, enquanto nossos políticos forem tribais, e os norte-americanos encararem os adversários políticos internos como o verdadeiro inimigo, os esforços do Kremlin de potencializar e explorar nossas fraquezas vão continuar.
Deveríamos evitar ameaçar a soberania russa e, em vez disso, trabalhar com nossos aliados para nos defendermos vigorosa e maciçamente dos ataques cibernéticos, físicos e híbridos – e recuarmos quando ameaçados.
Nesse caso, os sentimentos anti-Europa do presidente Trump são, sem sombra de dúvida, sua melhor contribuição a Putin.
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