O debate em torno de uma iminente vacina contra a Covid-19 parece seguir, infelizmente, o mesmo roteiro da grande maioria dos debates atuais: os extremismos. Os temas são novos, mas o pano de fundo nem tanto. No caso, a velha lógica do “amigo-inimigo”. Se tenho simpatia por esse grupo, defendo as suas posições; se tenho simpatia pelo grupo oposto, então as posições que defendo também são opostas.
O debate não tem tido como foco uma racionalidade adequada, mas apenas bandeiras de grupos opostos, camisas de times rivais. E o debate se inflama ainda mais quando o tema é colocado em termos, por assim dizer, binários: a favor ou contra, obrigatório ou facultativo, ditadura ou liberalismo etc. Mas será mesmo que os debates atuais devem ser travados neste formato? Será que não é possível parar um pouco para refletir, dialogar e buscar alternativas mais construtivas?
Colocar a questão de uma vacina (experimental) em termos de “obrigatoriedade jurídica” não parece adequado. Os tempos são outros. A sociedade mudou e o Estado precisa saber disto. A sociedade contemporânea (do cidadão mais simples ao mais erudito) não parece mais disposta a aceitar decisões impostas unilateralmente com fundamento apenas em conceitos jurídicos vagos e abstratos, como “interesse público”, “políticas públicas” ou “proporcionalidade”, sem que o Estado faça o mínimo esforço para demonstrar a segurança, os efeitos e as alternativas em relação à vacinação como medida sanitária de combate à Covid-19, colocando à disposição dos cidadãos uma possibilidade mínima de escolha, de questionamento e de entendimento.
Atualmente, parecem não funcionar mais pensamentos como “sabe com quem está falando?”, “sou eu quem decide!”, “é a Constituição que determina!” etc. Aliás, deve-se ter muito cuidado em perguntar para o cidadão comum se ele “não confia na Constituição do seu país”. A resposta pode não ser tão surpreendente assim. E até com certa razão!
O Estado brasileiro não pode se dar ao luxo de iniciar uma política pública em um formato impositivo, unilateral e monológico sem oferecer uma explicação mínima capaz de convencer e de iluminar o entendimento e a razão, acuando o cidadão ainda mais, num momento de grande vulnerabilidade pelo qual todos passamos.
Isto não significa que não temos deveres morais e jurídicos em relação aos nossos concidadãos. Pois certamente os temos! Significa apenas que não parece adequado começar um debate defendendo que a Constituição Federal impõe a vacinação obrigatória como medida sanitária de combate à Covid-19 porque, confesso, revirei o texto constitucional e não encontrei nenhum dispositivo neste sentido.
A Lei 13.979/2020 até prevê a possibilidade de adoção de medidas de vacinação, mas começar um diálogo a partir da obrigatoriedade ou não de o cidadão ter de se submeter a uma vacina, mormente uma vacina experimental (e parece que será experimental por um bom tempo), não parece um bom caminho, da mesma forma que não parece um bom caminho a judicialização da questão, o que só teria o efeito de acirrar ainda mais os ânimos e as desconfianças.
Como pai, é óbvio que quero o melhor para a minha família. Mas confesso que fico incomodado com debates dogmáticos, cheios de juridiquês, defendendo que eu sou obrigado a inocular um experimento porque a lei manda e ponto final. O debate seria muito mais rico e produtivo se começasse com um diálogo colaborativo do qual se pudesse extrair uma racionalidade mínima sobre a segurança, os efeitos e as alternativas disponíveis. Prefiro ser convencido primeiro para aderir depois. E estou realmente muito disposto a aderir espontaneamente. Podem acreditar!
Rafael Domingues é procurador do Estado e doutorando em Direito Administrativo.
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