A falta de vacinas no Brasil acendeu um alerta importante. A busca por imunizantes está ultrapassando o terreno do razoável e aterrissando no impensável. A opção realizada por alguns governadores em comprar a Sputnik V mostra o grau de desalento pelo qual passa o país. A aposta na vacina russa é arriscada, para não dizer irresponsável, mas encontra eco diante de uma população que morre aos milhares e clama pela chegada de medicamentos que possam debelar o vírus.
Ao contrário de imunizantes desenvolvidos por renomados laboratórios, como Pfizer, Moderna, Janssen e AstraZeneca, a vacina russa ainda é recoberta de desconfiança e mistério. Sem publicação de resultados consistentes de todas as fases de testes em revistas científicas respeitadas, o imunizante produzido pelo Instituto Gamaleya usa mais o poder de dissuasão do Kremlin do que a ciência propriamente dita como garantidor de sua eficácia.
Se os russos trabalhassem para fornecer dados transparentes e científicos com a mesma eficácia usada no contra-ataque político e midiático, certamente tudo seria mais fácil
Neste ponto entra o jogo político internacional e a pressão dos russos. O Brasil entrou nesta rota desde que governadores se mobilizaram para comprar o imunizante. Pouco antes da rejeição pela Anvisa para a importação da Sputnik V, iniciou-se uma campanha alicerçada em uma narrativa distorcida com o objetivo de pressionar a agência a liberar, ao arrepio das normas sanitárias, a importação do imunizante. A OMS e a EMA (contraparte europeia da Anvisa) sofrem com o mesmo problema há meses.
Faltaram dados brutos sobre os estudos da vacina, não foi permitido acesso à fábrica do imunizante em Moscou e, além disso, foram demonstradas sérias dificuldades para assegurar padrões basilares de controle de qualidade do fármaco. Isso, somado ao adenovírus replicante encontrado no imunizante, fez com que a Anvisa decidisse declinar a importação da vacina.
Se os russos trabalhassem para fornecer dados transparentes e científicos com a mesma eficácia usada no contra-ataque político e midiático, certamente tudo seria mais fácil. Mas, ao optar pelo caminho mais difícil, o Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF) e o Instituto Gamaleya anunciaram que processariam a Anvisa por difamação, pelo simples fato de a agência ter realizado de forma diligente o seu trabalho de avaliação.
Fato é que a Rússia tem utilizado seu imunizante como instrumento de soft power, deixando claro que seus objetivos estão muito além do cuidado sanitário e evidências científicas. Diante disso, o Brasil precisa se perguntar se o parceiro de Brics atua somente para proteger os seus próprios interesses e se está usando um dos seus principais sócios no bloco como país-teste de uma vacina sem eficácia comprovada.
A geopolítica das vacinas se tornou um ponto importante de debate e a falta de imunizantes no Brasil tem acelerado tratativas políticas emergenciais que podem trazer para nosso país vacinas ineficazes e até perigosas. O exemplo da Sputnik V é sintomático.
Por certo precisamos debelar o vírus, mas de forma correta, com prudência, baseado em evidências científicas que protejam a população e estejam muito além de simples ganhos políticos. Não precisa nem combinar com os russos.
Márcio Coimbra, cientista político, mestre em Ação Política pela Universidad Rey Juan Carlos e ex-diretor da Apex-Brasil, é coordenador da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília e diretor-executivo do Interlegis no Senado Federal.
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