Dedico minhas preces de Natal aos mentirosos e suas vítimas. A natureza humana tem uma vocação irresistível para a mentira e para a hipocrisia. Principalmente os que se dizem ao lado do “bem” e os que gostam de mentir para que fiquemos mais felizes. E, acima de tudo, cuidado com os que querem fazer um mundo melhor.
Estranho o parágrafo acima, não? Mas, tenha calma, hoje é Natal. Façamos um recuo histórico e logo voltaremos ao tema do estranho parágrafo acima.
Sempre me perguntam, afinal, quais são as fontes em minha formação. São muitas. A filosofia é um diálogo contínuo com os mortos. Entre elas, hoje, apontaria o filósofo, teólogo e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662), e o jansenismo, movimento do qual ele fez parte. Jansenismo é um movimento dentro do catolicismo francês que teve no século 17 seu ápice em termos de controvérsias. O termo vem do nome do padre holandês Cornelius Jansenius (1585-1638), que escreveu uma obra sobre a teologia da graça de santo Agostinho (354-430), cujo título mais conhecido é Augustinus (1640).
Resumidamente, sua “síntese” da teologia agostiniana da graça é que, sem a graça de Deus, não saímos do pecado. Logo, a natureza humana “caída” não é capaz de sair do atoleiro sem “a vigilante piedade de Deus”, termo de um jansenista contemporâneo, Georges Bernanos (1888-1948). Para um jansenista, uma das piores lutas é contra o orgulho e a vaidade que alimentam nosso cotidiano. Ambos, além de contaminarem a vida moral, contaminam a vida cognitiva, isto é, vemos o mundo e a nós mesmo através da lente do orgulho e da vaidade: logo, nos achamos bons, corajosos e honestos.
O “efeito jansenista” é estar constantemente em combate contra essa contaminação moral e cognitiva causada pelo amor ao orgulho e à vaidade. Não é à toa que os “senhores de Port-Royal”, como ficaram conhecido os jansenistas no século 17 francês (Port-Royal é o nome de um convento de freiras diretamente associado ao movimento em questão), eram vistos como pessoas um tanto melancólicas e dadas à busca atormentada da verdade sobre a natureza humana.
O jansenismo alimentou muito, ao longo do século 17 francês, o subterrâneo intelectual de autores que refletiram sobre a natureza humana. Esses autores ficaram conhecidos como les moralistes, sendo Pascal o maior entre eles.
Voltemos ao tema do parágrafo inicial. Uma das apresentações desse “efeito jansenista” é reconhecer o quão insuportável é a verdade. A marca jansenista é a análise fina da natureza humana e de suas agonias com a verdade.
Temos entre nós um exemplo de filósofo muito próximo da tradição jansenista, o jovem Andrei Venturini Martins. Vou te dar um presente de Natal: a indicação de um livro, A Verdade É Insuportável, da editora Garimpo (R$ 30, 144 páginas.). O livro de Andrei é exemplo elegante e didático do olhar jansenista, em sua profundidade e dureza. Mas a obra não se limita à tradição jansenista enquanto tal. As referências vão de Mário Quintana a Marilena Chauí. De Michel Onfray a Arthur Schopenhauer. De Platão a Freud.
O fio condutor é o tema da dificuldade de olhar o mundo naquilo que ele tem de mais sofrido. O método é a generosidade com o leitor. Por isso trata-se de uma obra muito útil para quem quer se aventurar de forma introdutória e sólida na tradição filosófica que descortina a hipocrisia do mundo. Outro traço é o “contemporâneo” relendo a tradição.
Qual seria o efeito do “pessimismo antropológico” jansenista hoje? Vejamos alguns exemplos do próprio autor. Se, por um lado, dizem que o homem é o único animal que busca alguém a quem amar e por isso sofrerá das armadilhas “do outro” em sua vida, por outro lado, para aqueles que defendem o “ficarei só”, a solidão o espera, antes que ele imagine. Nunca se fez tanta propaganda do sexo, quando, na verdade, nunca fomos tão brochas, porque a “máquina biológica é precária”.
“Boa parte dos homens trabalharão toda a vida como bois num curral” e, ao final, morrerão de tédio. Jesus disse que a verdade nos libertará. Quem paga esse preço?