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Ministro do STF, Edson Fachin. Imagem ilustrativa.| Foto: Divulgação/STF

Demétrio Magnoli publicou, recentemente, um artigo no jornal O Globo defendendo a suspeição de Sergio Moro e, consequentemente, a anulação das condenações de Lula. Ele procura diferenciar a “verdade jurídica” da “verdade fática”, tomando – assim me pareceu – de forma automática e inquestionável o lado da “verdade jurídica”, em detrimento da “verdade fática”, mesmo quando esta se apresenta de forma solar, inquestionável, como no caso dos processos de Lula, que – até as pedras sabem – é o maior corrupto jamais gerado no seio das democracias ocidentais.

É sempre muito chocante e triste quando se sofre uma decepção. Considero Demétrio Magnoli entre os mais competentes e articulados jornalistas deste país, e quase sempre estou de acordo com ele. Não desta vez!

Desta vez, discordo absolutamente dele. Nada de mais; algumas vezes já me decepcionei comigo mesmo. Até o gênio Albert Einstein reconheceu o erro gigantesco que cometeu ao adotar o modelo do universo estático, não expansivo. O que ele não percebera é que sua teoria matemática da Relatividade Geral já previa um universo em expansão, o que foi demonstrado, primeiro analiticamente (Friedmann, Lemaître, Robertson, Walker, for short) e, depois, empiricamente, pelas observações astronômicas de Edwin Hubble, talvez o maior astrônomo de todos os tempos. “Foi o maior erro de minha vida”, confessou Einstein após a demonstração empírica de Hubble. Einstein rejeitava a ideia de um universo em expansão porque isso significava um início, uma criação, e a ideia de um criador do universo o repugnava. Hoje conhecem-se evidências quânticas de que esta ideia de um criador é absolutamente desnecessária para explicar o universo em expansão.

Este artigo de Magnoli deve ser, também na minha opinião, um dos maiores erros de sua vida jornalística.

Meus comentários se resumem a uma frase, essencial ao seu artigo: “A verdade jurídica é diferente da verdade factual”. Parece algo muito avançado e abstrato em Direito, o que diz esta frase. Entretanto, qualquer estudante avançado de Direito já deveria saber que existe esta diferença (não acredito, entretanto, que “juristas” do porte de um Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski ou Kassio Nunes, entre outros, entendam a distinção). Por se sobrepor tanto a “verdade jurídica” (sempre contaminada de erro e interpretações erradas, forçadas ou não) sobre a verdade factual evidente é que vemos, quase que semanalmente, as mais absurdas decisões jurídicas, principalmente nos tribunais superiores do Brasil. A “verdade jurídica” deflui de um modelo de realidade (Model based reality, em bom inglês) e tenta representar (“within a reasonable doubt”) a verdade factual, ou real. Este modelo é necessário porque a verdade factual pode ser difícil, em alguns casos, de ser determinada. Nesses casos a verdade jurídica (“within a reasonable doubt”), produto de um modelo de realidade, é adotada. Mas isto não é para a cabeça de muitos dos nossos ministros de cortes superiores.

A soltura de André do Rap e a anulação das provas extraídas e derivadas de dados do Coaf sobre as falcatruas de Flávio Bolsonaro são dois dos absurdos mais recentes. Sobre o maior de todos, a “inocência de Lula” e, possivelmente, a “parcialidade” de Moro, discutiremos outro dia. No caso do Coaf, a verdade fática – fatos reais, verdadeiros –, autoevidente, solar, foi ostensivamente jogada no lixo em favor da “verdade jurídica”, que neste caso nem verdade é: trata-se de puro contorcionismo mental contendo uma mensagem ao pai do réu, dizendo: “Jair Bolsonaro, olha eu aqui, lembra de mim quando julho trouxer a próxima vaga no STF”. Para coisas assim também servem (sempre serviram!), principalmente em nosso Judiciário, as “verdades jurídicas”, contrapostas à verdade factual, quando evidente por si mesma. É a deturpação, quase diária, da “model based reality” sempre a serviço do crime e de criminosos de colarinho branco.

Há inúmeros e lamentáveis exemplos passados, no Brasil, em que a “verdade jurídica” foi imposta sobre a verdade fática, quando esta era facilmente perceptível. O caso do assassinato executado por Pimenta Neves, ex-diretor de redação do Estadão, é emblemático. Embora haja confessado o crime quatro dias depois de tê-lo cometido (verdade factual), ficou fora da cadeia por dez anos por ser considerado, pela nossa justiça (com “j” minúsculo mesmo), formalmente inocente (verdade jurídica) até o fim do mal-afamado “transito em julgado”, o que significa percorrer quatro instâncias judiciais (quatro instâncias: uma jabuticaba que só existe no Brasil) e um número gigantesco de chicanas, em cada instância, que só Banânia permite. A conclusão é que um assassino bárbaro, premeditado, mal esquentou a cadeia, embora tenha sido “formalmente” condenado a 19 anos de encarceramento. Aqui a “verdade jurídica”, em sua pior forma cartorial, burocrática, foi imposta sobre a verdade fática, evidente, confessa, solar, coisa tão comum neste país.

Esta imposição forçada da “model based reality”, praticamente deturpada, sobre a evidente e solar realidade fática é o tesouro mais amado de nossos políticos e empresários corruptos e de seus bilionários advogados criminalistas. Coisa de república bananeira mesmo. É a mesma técnica que levou Edson Fachin a negar aquilo que até os paralelepípedos de minha rua sabem: que Lula é o mais cínico, o mais mentiroso, o maior farsante e o mais corrupto político criado nas democracias ocidentais. Toda semelhança entre a nossa Justiça atual e aquela vigente na ditadura venezuelana – e são muitas as semelhanças – não é mera coincidência.

Certamente, como exposto atrás, que a verdade factual não é sempre, necessariamente, igual à “verdade jurídica”, como afirma Demétrio Magnoli. A verdade jurídica é, como se apontou atrás, o resultado de um modelo, que se espera seja o mais próximo possível da realidade fática (within a reasonable doubt, claro), e pode ser adotada sempre que a realidade fática seja difícil, ou mesmo impossível, de ser determinada. Não é o que ocorre, a maioria das vezes, no Brasil. Aqui, a realidade fática solar, cristalina (como no caso de Pimenta Neves, ou no caso das informações do Coaf), é simplesmente ignorada, jogada no lixo em favor de filigranas processuais absurdas. Vale lembrar também a absolvição da chapa Dilma/Temer na campanha eleitoral de 2014. Absolvição por excesso de provas provadas, diga-se de passagem.

Pode-se dizer, da mesma forma e por analogia, que a verdade factual não é sempre, necessariamente, igual à “verdade teológica”. Esta, na maioria das vezes, é absolutamente distinta e até incompatível com a verdade fática, estabelecida pela ciência. Por exemplo, em Josué 10 está escrito: “No dia em que o Senhor deu aos israelitas vitória sobre os amorreus, Josué orou ao Senhor diante do povo e disse: ‘Que o sol pare sobre Gibeom e a lua sobre o vale de Aijalom!’ O sol parou e a lua ficou onde estava, até que o povo tivesse derrotado seus inimigos”. Esta “verdade teológica” (uma forma de “model based reality”, mas com excesso de dúvidas), tomada como verdade absoluta, deu curso à interpretação de que nosso planeta era o centro do universo e que, portanto, tudo, incluindo o Sol, girava em torno da Terra. Esta interpretação era compatível com o modelo geocêntrico de Aristóteles, que, por essa e outras, tornou-se o filósofo queridinho da Igreja. O geocentrismo, como verdade teológica, já foi um cavalo de batalha da Santa Inquisição que acabou levando Giordano Bruno à fogueira purificadora e Galileu Galilei à prisão domiciliar perpétua; e isto porque, para salvar sua vida, Galileu retirou o que observara através de sua luneta: que o universo (o insignificante universo conhecido na época!) não girava em torno da Terra.

Mas muitos – não todos – ficam, ainda hoje, ao lado da verdade teológica, em que pese a verdade factual, demostrada pela ciência. Não é o caso, por exemplo, de 95% dos membros da Academia Americana de Ciências, que rejeitam a verdade teológica quando e sempre que ela contradiz a verdade fática, demonstrada pela ciência. O mesmo se diz de 85% dos suecos, 75% dos dinamarqueses etc. Pena que esta consciência não se estenda ao Direito brasileiro quando se trata de comparar a realidade fática com a verdade jurídica, aqui posta em analogia à verdade teológica.

O que importa para a higidez moral da sociedade é a verdade factual (análoga da verdade científica, falada atrás). Esta, a verdade factual, deve sempre, na ciência, no Direito e no cotidiano das pessoas, ser posta à frente e acima da verdade jurídica, ou verdade teológica.

Não importa se a luneta de Galileu foi aperfeiçoada por ele, comprada pronta, ou mesmo roubada (o que não aconteceu). Os achados empíricos obtidos através daquela luneta são o que importa: a Terra não é o centro do universo. Mas, no direito brasileiro, nossos “gênios” que ocupam os tribunais superiores fingem pensar o contrário: se Galileu não conseguiu sua luneta conforme o figurino jurídico da época, então não se tenha dúvidas: por mais que as observações mostrem o contrário, o Sol gira em torno da Terra e ponto final. E Galileu é culpado.

Foi o que aconteceu, mutatis mutandis, com a decisão do STJ sobre as evidências que incriminavam Flávio Bolsonaro, a maioria delas derivadas das informações do Coaf. Segundo a Quinta Turma de “gênios” do STJ, Flávio é inocente do crime das “rachadinhas” (crime que passou a não existir) porque aquela Turma “entendeu” que o Coaf (a luneta de Galileu do caso) não era adequado para fornecer tais evidências, por mais verdadeiras que fossem. O mesmo se aplica à decisão monocrática (isto é, imperial) de Fachin sobre o julgamento de Lula. Os fatos comprovados de forma solar (luneta de Galileu) mostram que Lula é um ladrão de primeira grandeza, criador da corrupção de governo (mensalão, petrolão). Os tribunais TRF4 e STJ confirmaram os achados da primeira instância e não detectaram quaisquer irregularidades. Inúmeros recursos foram analisados pelo STF e, em nenhum deles, um único ministro apontou a incompetência da Lava Jato de Curitiba. Aliás, segundo a Folha de S.Paulo de 14 de março, o próprio Fachin, em pelo menos dez decisões, foi contra limitar a competência da Lava Jato e tirar de Curitiba ações sem relação evidente com a Petrobras. Vem agora este mesmo ministro de origem suspeita (antigo militante de esquerda, subiu ao palanque em 2014 para pedir voto a Dilma e foi devidamente agraciado pela “presidanta” com a sinecura do STF) para decretar, de forma monocrática, imperial e súbita, a incompetência de Sergio Moro (isto é, a incompetência na aquisição da luneta de Galileu) para tornar o Grande Canalha, o Princeps Corruptorum, um homem livre e voltar a atormentar a Nação informada e honrada com a ameaça do retorno pleno da corrupção de governo. Só mesmo em uma república bananeira. Estamos, sim, com a contribuição decidida do Judiciário, no caminho da transformação do Brasil numa imensa Venezuela.

A “verdade jurídica” de que fala Magnoli pode, sem dúvidas, vir a ser muito diferente da verdade factual, como a verdade teológica também pode ser distinta da verdade fática. Neste caso, por mera questão formal, se acolhida a “verdade jurídica” em vez da verdade fática – como defende o autor –, pode-se deixar impunes os mais bárbaros corruptos e assassinos (assim considerados pela verdade fática) e garantir-lhes a convivência com a sociedade das pessoas honestas. Por mero formalismo acadêmico – formalismo caolho, diga-se logo –, o que propugna o autor pode ser resumido assim: dane-se a higidez moral da sociedade.

No caso da suspeição do ex-juiz Moro e de procuradores da Lava Jato (em julgamento suspenso no STF), se eles agiram de forma errada na coleta de provas (a aquisição da luneta de Galileu) – o que, absolutamente, não vejo –, devem, quem sabe, ser punidos. Galileu deveria ser punido se tivesse conseguido sua luneta de forma ilícita. Mas jamais se deve negar os achados através da luneta. Da mesma forma, que jamais isto sirva de pretexto – pretexto, sim, é ao que muitas vezes se resume a tal “verdade jurídica” para inocentar bandidos que tantas desgraças trouxeram aos brasileiros, entre eles o mais corrupto político da história das democracias ocidentais, Luiz Inácio Lula da Silva. Aqui talvez valha invocar o princípio da intranscendência da culpa no seguinte sentido: a culpa de um (Moro e os procuradores) não pode ser razão para inocentar outro, comprovadamente culpado pela verdade fática. Mas estamos em Banânia e temos uma justiça talhada para inocentar bandidos de elevado pedigree. Logo, devemos estar sempre preparados para o pior.

José J. de Espíndola é engenheiro mecânico, mestre em Ciências em Engenharia, doutor (Ph.D.) pela Universidade de Southampton (Inglaterra), doutor “honoris causa” pela UFPR e professor titular aposentado da UFSC.

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