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A vida em uma economia de hiperinflação

 | Federico Parra/AFP
(Foto: Federico Parra/AFP)

Eu já vira as fotos em preto e branco das crianças alemãs usando maços de notas como brinquedo durante a República de Weimar; também já lera a respeito do preço astronômico do pão no Zimbábue, onde as pessoas chegavam a carregar dinheiro em carrinhos de mão, mas a verdade é que nada prepara a gente para a vida com hiperinflação.

Na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial, ela foi resultado da reparação, que assumiu a forma de pagamentos de pesados impostos; na nação africana, foi consequência da reforma agrária de Robert Mugabe e da queda na produção de alimentos e investimentos estrangeiros que se seguiram.

Já na Venezuela é decorrência de duas décadas de erros crassos e má gestão econômica, gastos públicos nababescos, uma dívida pública estapafúrdia, apesar dos lucros aleatórios históricos com o petróleo, e uma corrupção de níveis épicos. Aquele que chegou a ser um dos países mais prósperos da região hoje é um desastre quase irremediável.

Com a crise política venezuelana atingindo novos patamares e a pressão internacional sobre Nicolás Maduro cada vez maior, é fato que a hiperinflação e a carestia que ela causou podem piorar – mas também podem ser a força que vai impulsionar sua saída do poder. No fim das contas, a hiperinflação não poupa ninguém.

Com o controle dos preços, os itens subsidiados desapareciam das prateleiras

Na Venezuela, a alta dos preços começou lenta, depois que Maduro assumiu o poder, em 2013. Sendo jornalista, comecei a mostrar como, aliada à escassez alimentar crônica, ela se tornava uma das razões por que a vida se tornara tão difícil em 2014.

Com o controle dos preços, os itens subsidiados desapareciam das prateleiras: quando, e se, você encontrava óleo de cozinha, fubá ou açúcar, dava para compensar o custo da comida mais cara revendendo os produtos baratos no mercado negro ou do lado de lá da fronteira. Virou um negócio tão lucrativo que não demorou a gerar uma nova profissão: a dos bachaqueros, ou “comerciantes formigas”, que transportavam qualquer coisa, desde sabonete a leite em pó, à Colômbia, para faturar em um único dia o quíntuplo do que levavam um mês para ganhar no emprego formal.

Maduro culpou a “guerra econômica travada no exterior” pelo esvaziamento das prateleiras decorrente desse esquema; na época, os defensores do governo, apesar de ficarem horas na fila dos supermercados, ainda acreditavam nele.

Em 2015, a Venezuela já tinha o pior nível de inflação do mundo. Alguns itens nunca chegaram a voltar às prateleiras; os comerciantes passaram a usar máquinas de contar dinheiro; as pessoas saíam com sacos cheios de cédulas. Em 2016, a inflação superou os 700%.

Na época, entrevistei Hugo Lugo, um colecionador de moedas e notas antigas. Em sua loja numismática, ele, que também é historiador amador autodidata, me revelou que o que começou como um passatempo se transformou em um lembrete doloroso do rumo que o país tomou. Ao lado das cédulas raras usadas durante os melhores anos do país – e hoje cuidadosamente protegidas por envelopes grossos –, havia um balcão de vidro onde as notas mais recentes, mas já amassadas, tinham sido amontoadas com descuido. Impressas três anos antes, não valiam absolutamente nada.

No fim de 2017, o índice de inflação superou os 50% ao mês. Foi um momento marcante, pois, segundo os economistas, confirmava oficialmente a presença da hiperinflação. A inflação é ruim, mas a hiperinflação é totalmente diferente.

E atinge mais brutalmente os mais pobres. Em média, os venezuelanos registraram uma perda de 10 quilos no peso corporal. Quase 90% da população hoje vivem na pobreza. Nas favelas de Caracas, falei com mulheres que, depois de reduzirem as porções dos filhos, foram forçadas a simplesmente deixar de alimentá-los.

Marilyn Alma, mãe de três crianças, teve de abrir mão do mais velho porque não podia mais alimentá-lo. Em uma semana, uma dúzia de ovos custava o equivalente a três dias de salário de Alma; na seguinte, o custo dobrava. Por isso, essa fonte mais barata de proteína hoje é um sonho distante para a grande maioria da população. E Alma, que já foi defensora ferrenha do governo, disse-me que “Maduro traiu o país”.

Quase 90% da população hoje vivem na pobreza

Os profissionais liberais também foram afetados. Nos bairros de classe média, os grandes supermercados, que antes viviam recheados de produtos importados, estão agora parcialmente abastecidos, e com versões mais baratas. Mesmo assim, cada família não consegue comprar mais de dois ou três itens, e é comum ver idosos tendo de deixar coisas para trás por falta de condições. De repente, as economias de uma vida inteira e a aposentadoria já não têm nenhum valor.

A hiperinflação também acarreta uma fuga de capital humano. Jovens engenheiros e médicos hoje são garçons em Bogotá, na Colômbia, ou atendentes nas lojas de Lima, no Peru. “E o pior é que eles ainda têm de mandar dinheiro para ajudar quem ficou”, conta Melani Delgado, lutando para não chorar, falando dos dois filhos que se foram. E diz que, com seu salário de dentista, mesmo trabalhando só meio período, conseguiu pagar a faculdade de ambos. Atualmente, as remessas do exterior já se tornaram o salva-vidas de muita gente. “Esse governo destruiu a família venezuelana e transformou os pais em parasitas”, conclui.

E, se pertence à minoria que tem acesso aos dólares, você pode até driblar a alta dos preços com a vantagem que leva no câmbio paralelo. Consegue até sobreviver, sim, mas descobre que é impossível planejar em cima de algo que muda de um dia para o outro ou se adaptar à destruição que há à sua volta.

Para esses, viver na hiperinflação é desmoralizante. A 6 mil bolívares (o equivalente a US$ 2, ou um terço do salário mínimo), 450 gramas de manteiga são obscenamente caros; pagar US$ 30 por uma garrafa de meio litro de azeite é criminoso. Hoje, essa garrafa custa o equivalente a cinco salários mínimos, mas o preço pode voltar a mudar amanhã. Ao “driblar o sistema”, você tem a impressão de estar esvaziando a economia do país.

Em uma economia hiperinflacionária, comprar comida se torna a única prioridade – e quem a vende só tem a perder. Com um controle rígido de preços, produzir, distribuir ou comercializar alimentos vai levá-lo ou à falência, ou à cadeia, se você tentar lucrar com a operação.

“Se as pessoas sentem o salário evaporando, estou vendo o trabalho de duas gerações da minha família prestes a se evaporar da noite para o dia”, lamenta o dono de um supermercado que pediu para se manter anônimo. Dezenas de executivos, gerentes e funcionários do setor de distribuição alimentar já foram presos, acusados de manipulação de preços, açambarcamento ou conspiração contra o governo. Falar com a imprensa ou permitir que os jornalistas filmem o interior das lojas também pode dar cadeia.

A medida recente, que cortou cinco zeros da moeda antiga, tornou-se inócua em questão de meses. Há duas moedas em circulação na Venezuela no momento: o bolívar forte e o bolívar soberano. Só que nenhuma das duas vale nada.

O colapso econômico da Venezuela está rapidamente se tornando um conflito internacional

O colapso econômico da Venezuela está rapidamente se tornando um conflito internacional. A inépcia de Maduro em lidar com a situação que gerou uma escassez aguda de comida e remédios resultou em uma crise humanitária que matou centenas de pessoas – inclusive Hugo Lugo, o colecionador – de doenças perfeitamente preveníveis.

Sua consequência foi um êxodo de mais de três milhões de pessoas – como Delgado, a dentista, que já mora com os filhos no exterior. É a pior crise migratória nas Américas dos últimos 100 anos, e já afeta nossos vizinhos.

O número de países que condenam Maduro e a ilegitimidade de seu governo só faz aumentar, como também as filas nos supermercados e nas fronteiras. Mais de 80% da população querem que Maduro renuncie. Como Alma, essas pessoas o culpam pela destruição nacional. Para o presidente, a hiperinflação é a força que move meio mundo e o país inteiro contra si.

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