Ao contrário do ocidente, onde a figura do dragão está sempre associada ao mal, o exótico animal mitológico é, na cultura oriental, todo o contrário. Com forma de serpente, bigodes e patas, significa poder e sabedoria, inclusive a representar a força dos imperadores da velha China. Nem a Revolução Cultural maoísta, feita a ferro e fogo, e que pretendia abolir crendices populares e tradições folclóricas, conseguiu neutralizar a latente ideia-força de poder desmedido da mirabolante criatura. Afinal, até imperadores são dragões e filhos de dragões.
Agora, em decisão contundente do Politiburo de Pequim, o Comitê Central do Partido Comunista Chinês aprovou, em votação simbólica, típica de regimes totalitários que pretendem ares democráticos, com eleições sempre a favor do poder de turno, mudança constitucional que permite a volta dos dragões. Ao afastar a limitação constitucional de dois mandatos presidenciais, buscou-se de fato a perpetuação no poder do atual presidente Xi Jinping, já considerado emergente imperador, o novo filho do dragão, bem ao gosto da China profunda.
A limitação de poder pelo poder permanece ainda como inelutável marco civilizatório
Xi Jinping, também secretário-geral do Partido Comunista, acumula assim poderes inéditos na recente história do gigante asiático. Como governante eficiente e político audaz, é fato inconteste que tem promovido com sucesso a estabilidade do país, no entanto a contar com todas as facilidades de rígido dirigismo totalitário, com planificação eficiente e com discutíveis controles legais. Um capitalismo de Estado desenfreado, o sonho de Wall Street, sem entraves legislativos ou limites de regulações ambientais ou trabalhistas. O sindicato é o partido.
Também atribui-se ao carismático líder, com importante presença internacional, a absoluta credibilidade popular, promovendo reformas e combatendo excessos das arcaicas burocracias, da corrupção ao clientelismo ancestral. Com isso, sua virtual eleição para novo mandato que deveria durar até 2023 constitui-se apenas em unção branca de novo imperador ad aeternum, com poderes absolutos para governar em poucos anos a maior economia e maior potência global.
Sem adversários e voz única e incontestável do partido único, com suas leituras políticas e econômicas incorporadas e consagradas como doutrina oficial, Xi lembra fatalmente o mito de Mao Tsé-tung. Porém, em momento histórico diverso, com a China prestes a enfrentar outros desafios, como potência mundial consolidada, sem entraves da Guerra Fria e sem inimigos internos, e bem resolvida no dilema ideológico de assumir as delícias do consumismo.
Leia também: O último imperador da China (artigo de Demétrio Magnoli, publicado em 5 de novembro de 2017)
Leia também: Como Trump está recuperando a grandeza da China (artigo de Susan Rice, publicado em 18 de novembro de 2017)
De toda forma, a guinada determinada pelo núcleo duro da nomenclatura do Partido Comunista Chinês, já establishment à moda conformista das repúblicas burguesas tradicionais, com a adesão ao personalismo irresistível de seu secretário-geral, representa fato dos mais importantes – infelizmente, no entanto, como mais uma das tendências lamentáveis de época de tantos retrocessos. Das poucas certezas da filosofia política, resta patente que a limitação de poder pelo poder, sem cartas brancas fantasiadas de vontade soberana do povo, permanece ainda como inelutável marco civilizatório.
Na sabedoria política da democracia grega clássica, líderes populistas e potenciais tiranos ganhavam dos atenienses o banimento da vida pública, para prevenir a ânsia de poder que poderia afogar e destruir a polis. Em votações com cédulas feitas com pedaços de cerâmica chamados ostraka, daí a etimologia do termo “ostracismo”, o candidato a ditador era convidado a afastar-se fisicamente de Atenas e da vida política, alijado das tentações do poder desmedido, para preservar a democracia. A República romana tomou um caminho parecido; após terminarem seu mandato, os cônsules frequentemente eram enviados para governar províncias longe de Roma. Não foram poucos os dirigentes poderosos que terminaram seus dias de volta à vida simples, o que era visto, com inteligência social, como o auge da carreira política dos homens virtuosos. A decadência de Roma é, bem a propósito, fruto do fim da República e de suas instituições democráticas, com retorno de poderes centralizados de demagogos e populistas, com os triúnviros já a caminho dos imperadores dementes e da queda de Roma. Se a história ensina, o populismo é a véspera dos bárbaros, o caminho sem volta para a Idade Média.